Lia-a. Esgotava-a na totalidade, cada uma e todas as páginas. Tinha dezanove anos. Era um tempo em que, tendo pouco, apreciava o pouco que tinha. Lembro-me, nela, de tanta coisa: do número dos anos trinta, que li na Biblioteca Nacional, em que a capa é a efígie do Mussolini com aquele ar de amuo esgazeado e a legenda «Mussolini, a sua cara é a melhor demonstração das suas ideias»; daquelas edições em que se publicou uma polémica entre o pintor Lima de Freitas, que escrevia do Carvoeiro, que durante muito tempo seria o único Algarve que eu conhecia, e um tal J. J. Colaço, que atacava a partir de Boston, quesília que quando há uns dez anos reproduzi ao magnífico artista ele, atónito, já nem se lembrava de ter ocorrido, gabando-me, enganado, a prodigiosa memória; daquele número magrinho, retalhado pela Censura, ornando na capa, em raivosa mensagem aos leitores, um desenho à pena sob o título «A Cegueira da Crítica e a Cegueira da Crítica» sobre o António Feliciano de Castilho, visconde. Lembro-me do Sottomayor Cardia, do Ulpiano Nascimento. A pedido do Francisco Salgado Zenha escrevi um artigo, assinando-o sob pseudónimo, que me custou ter perdido um emprego, do que nunca falei e hoje aqui fica.
Eu era então um ninguém extasiado ante o que lia, o típico leitor. Guardei-as todas e um dia um desenlace da vida fez com que ficassem nem sei em que casa, inúteis, como a vida nela vivida.
Lembro-me do prazer de a comprar e sentir quanto nisso se marcava a diferença face a um O Tempo e o Modo, a revista dos «católicos progressistas», por mim olhados na altura de soslaio, por serem católicos e, como tal, impossíveis progressistas. Lembro-me do orgulho de a trazer debaixo do braço, gesto de cidadania, tal como ler a República, do Raúl Rego, por militância necessária e o Diário de Lisboa para a informação possível. Lembro-me que depois do 25 de Abril, estas revistas, de heróica resistência, foram desparecendo do meu espaço, do meu tempo, do meu ser. O Tempo e o Modo morreu às mãos do MRPP que fez dela apenas um título, um envelope para passar do personalismo do Emanuel Monnier para o culto da personalidade do Presidente Mao. A Seara foi prosseguindo, cada vez mais magra, mais distanciada entre cada tiragem, mais restrita ideologicamente.
Via-a de vez em quando e nem a abria, talez com medo de enfrentar o meu passado e o passado da revista de Raúl Proença, onde escrevera a Irene Lisboa, o José Gomes Ferreira, o Aquilino, o Avelino Cunhal, o Jorge de Sena, tantos, tão diferentes e, no entanto, ali.
Hoje a Júlia Coutinho, tenaz militante e que teima, amiga, em que eu veja que há mais mundos do que a nesga desta minha cela permite vislumbrar, encaminhou-me o alerta: a Seara está a morrer em democracia, quando resistiu à ditadura.
Não sei se é uma tristeza ou uma vergonha. Aqui fica o aviso, avisei-me a mim próprio esta tarde. Daqui a pouco começa a quietude do entardecer. Naquele tempo, aos sábados, talvez por ser a hora da tristeza, eu lia. Hoje, que escrevo, não sei se o meu mundo estará melhor.