27.5.12

A frutificação dos 30 dinheiros

Leio na imprensa que foi preso o mordomo do Papa, alcunhado de O Corvo. A Cúria hesita em relaxá-lo ao "braço secular", isto é, entregá-lo à Justiça italiana. Estava na posse de documentos secretos, segundo consulto na fonte directa, o Serviço de Notícias da Santa Sé, aqui.
E li também que foi irradiado, sem que se saiba ainda porquê, o presidente do Banco do Vaticano, Gotti Tedeschi. A segunda notícia leio-a na agência de notícias da Igreja Católica, a Ecclesia, aqui. A qual esclarece que não se trata de um banco em sentido técnico, mas do Instituto para as Obras Religiosas
Trata-se, no que ao IOR respeita de um discreto lugar instalado na torre Nicolò V na Cidade Papal, entidade financeira do tipo das encarregadas da gestão de fortunas.
Sobre a pessoa de Tedeschi, membro do Opus Dei, e as suas ligações, cito da versão italiana do seguramente bem informado Wall Street Journal o artigo publicado quando da sua nomeação:

«Gotti Tedeschi, 54 anni, ex McKinsey, e' il rappresentante in Italia del Banco Santander Central Hispano (di proprieta' della cattolicissima famiglia spagnola Botin), ex fondatore della milanese Akros, banca di investimenti nata per fare concorrenza alla "laica" Mediobanca. Co-fondatore di Akros fu anche Gian Mario Roveraro, assassinato due anni fa in un delitto rimasto misterioso, pare legato a un ricatto finanziario. Gotti Tedeschi e' in grande sintonia con il governo Berlusconi, soprattutto grazie al ministro dell'Economia Giulio Tremonti. E' editorialista del quotidiano della Santa Sede l'"Osservatore Romano", insegna etica della finanza all'Università Cattolica di Milano. Dal 2004 al 2007 e' stato consigliere di amministrazione indipendente, nominato dal ministro dell'Economia, della Cassa Depositi e Prestiti, di cui e' di nuovo nel Cda dal 2009. Insieme a Rino Camilleri nel 2004 ha scritto il libro "Denaro e Paradiso: L'economia globale e il mondo cattolico".» [texto integral da notícia aqui].

A ligação entre uma notícia e outra, a da detenção do mordomo e a resignação do banqueiro, vejo-a, porém, aqui, na CNN: o agora detido poderia ter sido uma das fontes de que se serviu um jornalista italiano, Gianluigi Nuzzi, para ter escrito um livro chamado Sua Santità [aqui], periodista que já escrevera um livro chamado Vaticano, SA, o qual está traduzido em português, como se vê aqui. Em ambos os casos dúvidas e suspeitas sobre os negócios financeiros da Santa Sé, intriga política, escândalos.
O autor, ao falar do livro, aqui, dava já conta da fonte segura das suas informações.
Em causa, em suma, a faceta financeira da Igreja de Pedro, a gestão do que lhe permite o poder, facilita o luxo.
Hoje é domingo. Para os católicos praticantes, é dia santo, do seu encontro semanal com Deus, através da sua Igreja.
Baptizado, Crismado, educado num Colégio de missionários, tenho para com o Indizível uma relação íntima, de angústia feita de dúvidas e esperanças, de desencontros mútuos. A ser sombra, é, porém, a de uma criatura simples, pobre como Job, disposto a dar a sua vida pela salvação dos outros, como Cristo, pura mística sem figuração, como o Espírito Santo. A ser esperança, não tendo onde cair morto, é, no entanto, a minha certeza da eterna vida. A ser força, é, enfim, a do filho de um carpinteiro que empunhou, irado, o azorrague para varrer à vergastada os vendilhões do templo.
Creio no que para ser não precisa de ter. Se o máximo esplendor desse Ser é o máximo despojamento do que se tem, que eu siga as pegadas do monge, refugie-me no covil do eremita, porque abomino o ouro opulento misturado com religião, a venalidade a babujar a fé, a frutificação final dos trinta dinheiros.

26.5.12

Os devoristas

A crise de valores morais num País atinge-se quando ante a imoralidade já ninguém reage. A crise dos valores num País chega quando já ninguém está seguro de quem diz a verdade. Senti isto esta manhã ao ler, atrasado já, a notícia sobre o custo das refeições que se pratica no Parlamento. Veio revelada num jornal, aqui, mas a fonte terá sido o blog Má Despesa Pública, que sucessivamente publicou notícias sobre isso aqui e aqui e também aqui. O blog Porta da Loja, adita aqui, mais elementos.
Não vou transcrever o que dizem essas revelações. Peço apenas que leiam. Eu sei que temos todos pouco tempo, mas perdemos tanto tempo em coisas sem interesse. Ademais o dia de hoje está murcho. É uma visita guiada ao nojo, previno. Já agora, confira aqui, no site da Assembleia da República.
Cada um dos que lerem sabe o estado em que está o País, o estado de carência económica, a fome. Os deputados também sabem. Sabem que podem pagar, que devem pagar refeições que não sejam àquele escandaloso preço. Sabem que aquelas ementas requintadas são de restaurantes "gourmet", e que as refeições que no Parlamento se sirvam a preço bonificado devem ser dignas mas frugais, por serem refeições em local de trabalho. Sabem que a diferença entre o luxo que usufruem e o preço que pagam é suportado pelos contribuintes que somos todos nós outros. Sabem que comparando com o que estão a penar milhares e milhares de portugueses, aquele requinte sumptuário mais do que um escândalo é uma provocação.
Os deputados sabem isto tudo mas não se importam. Sabem que fazem parte de um sistema político que ofende o nome da democracia chamando-se democracia. Sabem que integram uma longa família de privilegiados que, em rotativismo permanente, vêm ocupando o poder, com umas franjas irrelevantes para os que estejam fora do sistema. E mesmo quanto a esses sabem que a lei do come e cala-te ainda é a grande lei para os comprometer, comprando-lhes o compromisso.
Os deputados, os governantes, aqueles que a política eleva a cargos e coloca em altas funções sabem que estão por cima de um estábulo de mansos bois que é o que resta do Povo português, que rumina sobre a palha seca do dia a dia e se conforma a mugir lugubremente o fadinho da pouca sorte.
Comensais do luxo, ruminantes da sem-vergonha, cevantes do aproveitanço, na hora da digestão nem uma crise de consciência os afectará, quantos folheando jornais já no hemiciclo, tantos passeando na net, nos intervalos do instante fugaz do «bate rabo» do quem vota a favor, quem vota contra, quem se abstém, a ladainha sonolenta sobre o trabalho legislativo em que pouquíssimos trabalham e em que se vota como o partido manda votar, tantos por cabeça.
Não, os deputados frequentadores dos restaurantes parlamentares não têm  disso que lhes atrapalhe a gorja, aflija as entranhas, amargue o fígado, gazeei as tripas. É que a deputação nacional terá seguramente sanitários adequados em que, com trânsito regular dos que querem lá saber, exprimem, vindo do eu íntimo, o que sentem quanto a todos nós.
Um dia, um dia estou certo, quando os famintos cercarem o hemiciclo para porem termo, a pontapé que seja, à grande bouffe desta imoralidade nojenta, talvez os apanhem com as calças na mão.

20.5.12

Um dia mau em Rio Mau

Sabia que era perto de Vila do Conde. Há um local com o mesmo nome em Penafiel. Viajámos até lá. O propósito era encontrar a igreja, românica, fotografar-lhe as representações, de uma insólita icononografia sagrada, de que falarei em outro lugar. Em São Cristóvão de Rio Mau.
Estava, porém, fechada. Chovia mansamente. Mesmo assim, segurando um no guarda-chuva, fotografou-se, uma a uma o que eram no exterior, incluindo o tímpano, as imagens talhadas na pedra.
Já em cabisbaixa retirada, por nos estar vedado o interior, cruzá-mo-nos, elas a sair do cemitério em frente, com duas paroquianas idosas, semblante amável. «Está fechada a Igreja...», arrisquei dirigindo-me a uma delas, na esperança de um informação. Sim estava, mas fosse à casa ao lado, a do padre, batesse à porta que «a criada» tinha a chave e viria abrir.
Assim fomos. Educadamente, polidamente, humildemente, um toque de campainha.
Surgiu a dita à janela, moçoila, cabeça atirada para fora em gesto de rompante, como se fossemos intrusos, logo vociferante porque era meio-dia, e que se isto eram horas, e que estava a fazer o almoço e num sei quê mais de imprecações.
Entre desculpas encolhidas minhas, lá veio, entretanto, abrir, sempre com o arrazoado censuratório quanto à inconveniência da hora, que a igreja é visitada por milhares «de estrangeiros» mas que eles não batem àquela hora «que nisso são são mais organizados». 
Tornei a pedir desculpa, desta vez já nem sei se desculpa por não ser estrangeiro. Debalde, porém, porque a arenga continuava, que «estava a fazer o almoço para pessoas de noventa anos e se isto são horas...»
«Mas podiam pôr um letreiro com o horário...», ainda arrisquei, timorato, receando a resposta que não tardou. «Não é preciso letreiro nenhum! Isto são coisas que se aprendem de pequenino! Não se bate à porta da casa das pessoas ao meio-dia». 
E que bem nos tinha visto meia-hora antes a chegar, atravessou, mentindo agora, sempre no mesmo tom de toque a rebate, como se não tivesse bastado ter-nos dito que agora não podia e que voltássemos mais tarde.
Fotografámos apressados, quais ladrões furtivos. 
Agradeci muito, renovei desculpas. 
Faltava o final do responso: que nós não valorizamos o que temos, mas os estrangeiros «esses sim dão valor.». E eu português, afinal, um mísero português...
Regressámos aturdidos, ofendidos, humilhados.
Da casa do vigário de Cristo na Terra, aliás uma bela casa de quinta, de automóvel à porta, tinha vindo aquela emissária, a receber com aquele modo desabrido quem vinha procurando a simbologia da divindade com nove séculos de vida. 
Nem me atrevi a dizer porque estava ali. Mais do que inútil, era sujeitar-me a invocar a decência espiritual do argumento a quem me tratava como se eu fosse uma besta ímpia e sem modos.
Fosse o próprio Jesus Cristo seria recebido do mesmo modo, com duas pedras na mão. Uma vergonha. Vim dizê-lo aqui pelo respeito que me merece o que é sagrado. Diz a lenda que o lugar chama-se Rio Mau por haver ali túneis guardados por dragões e serpentes.