24.3.20

Retorno ao primordial

Há momentos em que se retorna ao primordial. Este espaço foi criado numa lógica de intervenção cívica revoltosa e contestatária num tempo em que grassava em muitos sectores da vida portuguesa complacência, monotonia, indiferença coexistente.
O título, "A Revolta das Palavras", que fui buscar a um livro de Maria Ondina Braga - melhor exemplo não haverá do que a desolação interior como censura desesperada à crueldade circundante - volta a inspirar.
O mundo massificou a contestação, as redes sociais criaram a algazarra, a permissão do anonimato, quando não dos falsos perfis, abriram a porta ao insulto soez protegido pela cobardia. O nível geral da discussão tornou-se miserável, a troca de ideias substituída pela troca de insultos. O pouco que foi sobrevivendo tornou-se cubículo para iniciados ou esconso para adeptos, lugares perdidos no labirinto da banalidade.
O mesmo mundo que tudo isto permitiu relativizou a conceito de verdade, gerou a total permissividade mas, simultâneamente abriu portas à submissão ao conveniente: diz-se tudo de todos e de toda a forma desde que não se toquem nos novos tabus politicamente correctos, protegidos que estão pelos novos censores.
Hoje está tudo manso porque grassa ao medo, mas já começa a despontar a epidemia do "nada estar nunca bem", versão post-moderna da história do "Velho do Rapaz e do Burro".
O último texto que aqui deixei, a 15 de Fevereiro de 2018 dizia o que direi hoje. Muitos dos seus antecedentes relatam o que ainda hoje penso.
Regresso aqui porque, encerrados os que podem estar confinados às suas casas, reflectimos ante o que se passa, isto os que não se alienam com trivialidades soporíferas; os outros, esses têm de enfrentar risco de vida para permitirem que nos chegue aquilo de que precisamos, nós, os enclausurados. Estão aí, atrás de balcões, em motos, em camionetas, em autocarros, distribuindo, transportando. Aviões que ainda circulam, barcos que não são só cruzeiros para alguns.
Quando sofremos as agruras psicológicas da reclusão deveríamos pensar nos que estão na linha da frente do combate à doença, mas também naqueles que estão na linha da frente ao serviço das primeiras necessidades e das comodidades que ainda circulam. Heróis pelo dever, heróis pela necessidade.
Humildade, eis o conceito que falta, assim como falta a capacidade de saber sofrer em contenção.
Saídos há duas semanas do mundo do "curtir", da terra do "tasse bem", somos incapazes de encarar o estar-se mal e preparar-nos para o vai estar péssimo.
Todos os indicadores económicos e financeiros mostram que o Estado-providência não está preparado nem tem capacidade para resolver tudo; o nosso Estado e o Estado que governa outras nações.
Quem está atento, avisa que passada a devastação iremos encontrar-nos em tanto como a Europa do pós-guerra nos países que não tiveram o conforto da neutralidade e o nosso teve, por mais ingratos que tantos se mostrem quanto ao que isso significou paras as gerações que nos antecederam.
Aqui estou, onde não vinha há tanto tempo, com este texto atabalhoado pois traduz um sentimento.
Há fidelidades que não se perdem.