28.11.08

A morte virtual

No mesmo dia em que vejo o título de uma notícia que refere «robôs quase humanos» vejo outra que fala numa professora agredida a murro e a pontapé por um aluno de dezasseis anos. Fosse um caso e já era mau. Não é. Houvesse possibilidade de controlar a situação, mas não há. A violência doméstica, escolar, nas ruas está disseminada. A violência banalizou-se. As mesmas pessoas que se impressionam com os mortos em Bombaim que lhes chegam nos noticiários da TV assistem impávidas a cenas de mortandade sanguinolenta todas as noites na mesma TV e dormem refasteladas. Há um ponto em que a morte real e a morte virtual se confundem. Os pilotos de bombardeiros sabem isso. Os alvos são apenas pontos num écran. A dor não é um dado e a destruição de vidas é um número.

20.11.08

6 a 2

Vinha hoje a remoer na sentimentalidade doentia e depressiva do povo português ante os 6-2 que levámos ontem em face do Brasil, em futebol. Os políticos que vivem a oferecer alegrias e amanhãs devem estar preocupados. O futebol é um meio de catarse dos sentimentos cívicos quando em baixa, um entretém das frustrações privadas, uma sublimação da raiva social a que a política não dá saída.
Os pregos no caixão da portugalidade pontapeante terem sido martelados pelos brasileiros tem, porém, um acréscimo de opróbio, o de ser um filho a bater no pai.
Eu sei que a selecção portuguesa tem tantos portugueses quanto, um destes dias, a Nação portuguesa é, afinal, um aglomerado de estrangeiros a trabalhar entre nacionais desocupados. Mas mesmo assim dói!

18.11.08

Seis meses é um pulo, no inferno!

Tenho lido poucos jornais, sei pouco de acontecimentos correntes, estou muito afastado da política. Não por pedantismo ou por incivilidade, mas porque a informação de que preciso é a que tenho: alguns jornais, uns tantos acontecimentos, pouca política. Descobri que tinha lido poucos livros, como quem descobre que tem vivido pouco a vida. Ah! E descobri há pouco, ao passar por aqui, que ao PSD fazia-lhe bem seis meses sem Manuela Ferreira Leite. Podia ser que assim sobrasse alguma coisa do que já foi em tempos um grande partido nacional.

Sábios e Governo

Há cargos cujo nome envergonha quem deles faça parte. António Vitorino terá proposto «criação de uma comissão de sábios [sic] que teria como objectivo alcançar um acordo sobre a questão polémica relacionada com o processo de avaliação de professores». Isto, segundo diz a notícia que vi «em nome da independência e da razão».
No tempo de António Guterres o lema era «razão e coração». Agora o PS ficou sem «coração», trocando-o pela «independência».
Mas o que duvido é que alguém com independência perca a razão por fazer parte de uma comissão de pessoas chamadas de «sábios».
Quem for verdadeiramente sábio que se livre. A sapiência é saber distinguir a inteligência da esperteza.
Quanto a mim se fosse Governo demitia-me. Ter que me ver arbitrado por sábios só pode ser fazerem de mim estúpido.

15.11.08

As nossas vidas nas suas mãos

Calhou viajar de autocarro até ao Algarve e de autocarro regressar no mesmo dia, na mesma viatura, o mesmo condutor. Saímos de Lisboa pela treze, chegámos quase pelas dezoito, com praticamente uma hora de atraso. Regressei a Lisboa era meia-noite. Vinha cansado de tantas horas sentado, algumas a dormir, outras a ler.
Quer tudo isto dizer que aquele condutor fez nove horas totais de volante e sofreu um dia de trabalho de onze horas.
E depois querem os senhores da Prevenção Rodoviária, e os do Governo, e todos os da polícia, e as associações que se preocupam com as mortes nas estradas, para não falar nas vítimas, nas seguradoras, nos da Justiça, em que uns perdem, outros ganham, outros exibem-se neste macabro massacre de mortes nas estradas, que não haja acidentes?
Como é possível que um homem destes resista? Como é possível que isto seja permitido? Como é possível que haja tanta gente a fazer de conta?
Regressei esgotado e com vergonha de o dizer. Ali mesmo, fiel da minha vida e dos poucos soturnos passageiros, havia um ser humano a quem doía mais.

13.11.08

Fernando Pessoa em leilão

Tudo se reduz ao que vale o que sobeja. Fernando Pessoa teria de passar pelo vexame póstumo de ver os bens leiloados pela família e o leilão interrompido por providências judiciais. Li isto esta noite, por não ter podido trabalhar que assim sucedeu.
Talvez por isso, regressado a casa, tenha ido folhear, como num consolo possível, o livro de Luís Pedro Moitinho de Almeida sobre o poeta, que o falecido advogado e estremosa criatura conheceu ainda rapaz, empregado de uma firma de seu pai, sita no primeiro andar do número 71 da Rua da Prata.
Estão ali, não os modos de «fazer pela vida», com que António Mega Ferreira tentou reconstruir uma imagem banal e empresarial de quem escreveu os Poemas Dramáticos, mas sim os «vales à caixa», promissórias mendicantes de quem com isso alimentava o seu viver distante.
Fernando António Nogueira Pessoa morreu no Hospital de São Luís dos Franceses. Faltava só matá-lo, a golpes de licitação póstuma. Agora já está.

A primeira dama

É simpático um homem com as responsabilidades do Presidente dos Estados Unidos da América, na hora da despedida, dizer que errou nisto ou naquilo por não ter escutado a mulher. Dá um toque carinhoso, familiar, humano. O mundo que o detestou emociona-se. Os que o ridicularizaram como a um animal de circo perdoam tudo. É a América mental na sua pior expressão, mais infantil.
Mas claro que há o outro lado da questão. É que um homem com as responsabilidades do Presidente dos Estados da América tem por detrás de si compromissos legais, um programa, uma plétora de conselheiros, o Congresso, a História do seu país. Mas que vale isto ante a opinião íntima da sua mulher?
A alcova tem peso na política, na diplomacia, na geoestratégia. Por causa dela fizeram-se guerras, desfizeram-se impérios. Nela se forma também, por outra forma, a lógica da canhonheira, a retórica da tensão e do apaziguamento.
Perante isso que vale o Pentágono, a Sala Oval, o Departamento de Estado? Pior do que as Monarquias que têm duquesas são as Repúblicas com os seus cônjuges.