[publicado por lapso originariamente no meu blog homónimo] Não falo aqui da minha profissão, mas foi por causa dela que estive hoje numas miseráveis - é o termo, miseráveis - instalações da PSP, indignas para uso de um organismo do Estado que desempenha funções de autoridade, ofensivas para os agentes da força pública que ali trabalham em condições aviltantes, abjectas para os cidadãos que ali têm de comparecer.
E foi ali mesmo, num televisor colocado na sala de espera, que o vi, um fulano que dizia o rodapé da imagem ser ministro, a dar conta de que o Governo vai incentivar os funcionários públicos a irem para as suas repartições de bicicleta.
Sim, de bicicleta como se o País fosse a Holanda e não, logo por falar em Lisboa, a das Sete Colinas, Coimbra a do Quebra-Costas e tantos outros lugares em que a tração animal se vê em tratos de polé para vencer o declive.
Nem sei, confesso, que sentimentos me atravessaram.
Logo o primeiro podia ser político, eu que ando afastado da política activa: para um Governo de um partido que se vai apresentar a eleições e que salteou a bolsa dos funcionários - mais a do que os demais cidadãos, e mais ainda a dos reformados - com sacrifícios insuportáveis, reduzindo-lhes o poder de compra e só tendo sobrevivido à ira porque reina na função pública a contenção verbal por amor à sobrevivência, que um acto intempestivo faria o recalcitrante perder o emprego, estando a maioria dos servidores públicos vergonhosamente em regime precário e a recibo verde, um Governo desses, dizia, como é este, vir agora carregar-lhes com o achincalho de irem para o trabalho de bicicleta, é, de facto, estar a pedi-las em termos de resultado eleitoral.
E não se diga que se trata de um programa ambiental, porque a mensagem que passa não é essa, porque a ser assim, sugeririam que utilizassem todos e não os funcionários mais transporte colectivo e menos transportes individual, e, a tornarem-se ciclistas os que andam a quatro começassem pelos governantes.
Mas confesso que foi a sensação de estar ante o ridículo o que me assaltou, lembrando-me de uma velha história anedótica que se imputava aos tempos do salazarismo, e tradutora do espírito da época. Assim, rezava a crónica, que um funcionário dos tempos "da outra senhora", sequioso de bajular Sua Excelência, o Presidente do Conselho de Ministros, tendo tido a rara oportunidade de se abeirar dele lhe teria dito, louvaminheiro: «Sabe, Senhor Presidente que hoje, fiel à política do Estado Novo de produzir e poupar, vim para a repartição a pé e não de eléctrico, como costumava fazer, e assim poupei oito tostões», ante o que, Salazar, o estilo frio e manhosamente desconfiando ante tanta lisonja e subserviência, lhe retorquiu, enfrentando o espanto do inesperado interlocutor: «pois fez mal, fez muito mal, porque se em vez de vir a pé em troca do eléctrico, tivesse vindo a pé mas a correr a trás de um táxi tinha poupado vinte e cinco tostões».
Eis o que, hoje, naquele ambiente de apoucamento e ridicularização da função pública, como senti as palavras da criatura que será ministro.
Há limites para tudo, de facto, até para a falta de decoro. Permito-me, aliás, supor, que se em vez de bicicleta, lhe calçarem os patins, ao autor da fala e o mesmo a outros como ele, aí sim o País poupa e bastante, pelo menos no efeito de ideias delirantes, estas e outras que tais como ela.