31.3.09

A glória do génio

A 20 de Dezembro de 1944, Mircea Eliade, conselheiro cultural da Embaixada da Roménia em Lisboa, prolífico filósofo do misticismo e do esotérico, historiador, romancista, registava no seu diário uma palavra de tanto sofrimento ante a morte de sua mulher Nina Mares, ocorrida um mês antes. Parte da agonia começara ainda em Lisboa, no nº 147 da Avenida Elias Garcia, com os sinos da Igreja de Fátima ali ao lado a dobrarem pelo desenlace. À dor íntima por um longo amor agora só memória segue-se a angústia da pobreza. «Estamos cheios de dívidas. Ainda não paguei ao hospital (as transfusões) e a uma série de médicos. Escolho o primeiro lote de livros para ser vendido. Encontro uma casinha em Cascais por 100 escudos por mês», escreve ainda nesse dia. Eis a residência da Rua da Saudade, n.º 13, em Cascais. Leio isto no Diário Lusitano, o seu jornal editado em Portugal há um ano. Em 5 de Setembro de 1945 consigna nele «o último banho em Cascais». Terminaria nos Estados Unidos. Hoje fica dele a glória do génio.

26.3.09

Deputados: saúde e fraternidade

Fantástico! A folha oficial hoje traz o regime jurídico das faltas dos deputados. Lembram-se que se perderam votações com o hemiciclo às moscas e outras escandaleiras?
Diz o dito normativo, a propósito de justificação de faltas: «a palavra do Deputado faz fé, não carecendo por isso de comprovativos adicionais».
Ora assim é que é! Respeitabilidade para quem merece respeito. Um deputado não mente! O ridículo é que «quando for invocado o motivo de doença, poderá, porém, ser exigido atestado médico caso a situação se prolongue por mais de uma semana». Está tudo aqui.
Riam-se, pois o caso não é para menos. Quer dizer: se o deputado invocar uma qualquer razão não médica, a sua palavra é de lei! Mas no caso de dizer que está doente a sério, alto lá! Pode exigir-se a prova.
Sabem porquê? Porque como os nossos deputados são umas pessoas muito saudáveis, se vieram alegar doença séria, que dure há mais de uma semana é caso para desconfiar que podem estar a exagerar. A exagerar digo, a trabalhar, porque a mentir, isso nunca!
Assim como assim e numa lógica a contrario como dizem os juristas o regime é este: os pais da pátria podem faltar sim, desde que o façam saudavelmente.

24.3.09

A barca do venha a nós!

Esta noite li uma entrevista antiga em que o Augusto Ferreira Gomes demonstrava que o João Gaspar Simões não tinha razão quando afirmou na monumental biografia do Fernando Pessoa que este não passara fome. O António Mega Ferreira deu-se há tempos ao trabalho até de escrever um livro para mostrar em que medida é que o poeta da Mensagem tinha tido vários empreendimentos mais ou menos lucrativos, incluindo uma tipografia. Caramba!
Ser pobre é, em certos meios, uma honra para o próprio, uma vergonha para os outros. Na cultura é muito assim. Há quem tenha necessidade de mostrar que o sucesso dos laureados é sinónimo de riqueza e de bem-estar na vida. Às vezes, prosaicamente, o remedeio é um facto, mas a necessidade de demonstrar é uma forma de justificar-se o demonstrador.
Na política vai o mesmo. A actual situação convive mal com a ideia de que no regime que terminou em 1974 nem Salazar nem Caetano, defeitos que tenham, enriqueceram com a política. Isso explica que haja uma biografia de Marcelo Caetano cuja autora, segundo um jornal de hoje, diz «ter ficado surpreendida com o que descobriu sobre os seis anos de exílio do ex-chefe do Governo, contrariando a ideia de que teve um exílio penoso e com dificuldades financeiras».
«Exílio produtivo no Brasil», assim lhe chama o prestável Público ao noticiar o livro, que é da jornalista Manuela Goucha Soares e se chama «Marcello Caetano - O Homem que Perdeu a Fé»
Que a descoberta tem valor político mostra-o o facto de o ministro da Defesa Nacional apresentar o livro.
Não faz mal. Um dia a História os julgará.

23.3.09

A globalização do plágio

Plágio? Isso era antigamente. Agora com a globalização e as modernas teconologias de comunicações e sofisticação de software a realidade é outra. O próprio escusa de se maçar. Quer comprar uma tese universitária, um ensaio académico, um simples trabalho escolar, ou um relatório profissional. É fácil? Através da net consegue-o a preços módicos. Não importa onde está o ghost writer. Há sempre uma agência que consegue satisfazer a encomenda. Leia aqui e fique a saber tudo. Mais: um sistema de tratamento de texto apaga a possibilidade de se encontrarem semelhanças. Melhor do que poderem ser trabalhos originais, são trabalhos que parecem originais.

22.3.09

O país em chamas

Chega-se a casa, espreitam-se as notícias e vê-se que há quinze incêndios activos no nosso país. E estamos na Primavera. Não tenho outro fundamento para dizê-lo salvo uma intuição: Portugal não pode estar a arder por acaso. Suspeita-se disso quando há razões de canícula para a nossa terra estar em chamas. Mas agora? Dito isto e porque vejo poucas notícias fica-me só esta dúvida: ante uma situação em que agora as florestas amanhã os espíritos, tudo arde, algum responsável já apareceu a dizer que urge encontrar responsáveis pelos incêndios? Não digo pelo fogo posto, ao menos pelo deixa arder.

21.3.09

Coragem, angolanos!

Houve um tempo em que se me pedissem dinheiro para a fome em Angola, eu talvez desse. Não por ter nascido lá, mas por me sentir condoído com a miséria. Ou talvez não desse porque de Angola havia dirigentes com má fama. Mas hesitava em não dar.
Hoje é o dinheiro de Angola que compra empresas, bancos e jornais em Portugal. Estão ricos.
A mesma geração que chorou Angola, hoje nem pena chega a ter de Portugal. Agora está lá o Papa. José Eduardo dos Santos tem motivos para estar feliz. Bento XVI apelando aos jovens angolanos pediu-lhe «coragem». Claro! A de Cristo na cruz.

20.3.09

Tanques ou tractores

Em 22 de Junho de 1934 o Dr. Ferdinand Porsche aceitou criar o carro do povo para Adolph Hitler. Saiu o Volkswagen, cujo nome quer dizer precisamente isso, o carro do povo. A ideia era criar um utilitário barato que pudesse ser comprado com as poupanças de qualquer trabalhador. Cinco marcos por semana de aforro bastavam: «Fünf Mark die Woche musst Du sparen, willst Du im eigenen Wagen fahren» [cinco marcos por semana deves poupar se quiseres guiar um carro, eis o lema que o nacional socialismo prodigalizaria].
Em 1928 a BMW [Bayerische Motoren Werke] lançou-se na produção de automóveis, por ter sido impedida pelo Tratado de Versalhes de produzir aviões. Voltaria a produzir motores para a aviação militar alemã, a Luftwaffe, a partir de 1930.
Este ano, segundo a imprensa financeira, «os lucros da Volkswagen (VW) cresceram 26 por cento no primeiro trimestre de 2008, para 929 milhões de euros», mas mesmo assim a companhia vai pedir ajuda ao Governo alemão; enquanto isso, a BMW admitiu esta quarta-feira que «teve uma quebra de 90 por cento nos lucros».
A continuar assim a depressão económica não é de estranhar que haja quem pense, revivendo do keynesianismo o lado macabro, no efeito multiplicador de uma guerra: por um lado estabiliza a demografia por outro fomenta a produção. Fabricar tanques ou tractores tem sido sempre a hesitação de muitos estrategas. Na América Obama fala já em produzir um milhão de automóveis eléctricos até 2015. Oliveira Salazar diria numa carta ao nosso Embaixador em Washington:«cuidado, senhor Embaixador, os americanos não são um povo iluminado por Deus, sim pela electricidade». Fim de citação.
P. S. Claro que há o pacifismo cínico, que o Boris Vian ironizava ao dizer: «la guerre ça doît être trés nuisible au commerçant, car elle détruit le client!». Infelizmente no campo dos horrores humanos, a paz também é um negócio.

19.3.09

Um país que estava sem tino

Um jornal noticia: «Tino de Rans é candidato independente em Valongo». Aqui.
Ora houve um tempo em que o Tino de Rans podia ser objecto da chacota e do riso, da chalaça e da mofa. Hoje dilui-se na paisagem local. Aquilo que fazia dele objecto de culto pela negativa, era ser o anverso dos citadinos pipis da política. «Eu só vou cumprimentar o engenheiro António Guterres mas, perdoem-me, eu mereço!», foi um dos seus momentos altos e de glória. Para ver mais, aqui.

Provedor: e depois do adeus!

O Provedor é eleito pelo Parlamento e deixou-se eleger. O Parlamento é formado por partidos. O Provedor não mais é substituído pelo Parlamento, apesar de o seu prazo de validade ter terminado, porque os partidos não se entendem. Agora o Provedor que se deixou eleger pelos partidos atira-se a um dos partidos, no caso ao PS, porque nunca mais o deixam sair. Está tudo na TSF.
O Provedor tem razão em querer ir embora, mas ao Dr. Nascimento Rodrigues não fica bem dizer o que diz. Dir-se-á que esperava dos partidos outra atitude. Talvez tivesse essa ingenuidade. Mas onde o fundamento resvala é quando o ainda Provedor sugere que seja outro partido, o PSD, agora a escolher o seu sucessor.
Ora aí está. O Provedor da cidadania passa a Provedor da partidocracia.
No meio desta tristeza, tenho uma melhor ideia: extinga-se o cargo. Em nome já não de valores, mas sim de interesses, o dos contribuintes não terem de suportar aquilo que, nisso Nascimento Rodrigues tem razão, é uma «comédia à portuguesa». É verdade que o cargo de Provedor vem na Constituição. Mas não faz mal. Há tanta coisa que vem na Constituição...
P.S. A dita TSF noticia, a fechar a sua prosa: «Recorde-se que, Nascimento Rodrigues foi nomeado pelo governo de António Guterres em 2000». Riam-se. Quando a própria imprensa já acha que o Provedor não é eleito pelo Parlamento mas sim nomeado pelo Governo está tudo dito!

La donna e mobile

Lê-se na imprensa económica que «as pop up stores Reebok são lojas temporárias, cujo tempo de permanência não excede um mês mesmo local, e vão estar presentes em diversos centros comerciais do país, e numa primeira fase, no primeiro semestre de 2009 (entre Março e Maio), refere o comunicado». Cito: «As lojas têm o formato de quiosque, com cerca de 15 a 20 metros quadrados e foram concebidas especialmente para o sexo feminino».
Neste ambiente de crise e de falências, lojas que não ficam muito tempo no mesmo lugar é o que há mais. Agora, pelos vistos, o conceito de instabilidade perde a sua carga necrológica para ganhar um tónus de vida, de modernidade, «concebidas especialmente para o sexo feminino». Fantástico! «La donna è mobile qual piuma al vento, muta d'accento e di pensiero».