18.6.21
Cegos guiados por loucos
Tento ser uma pessoa moderada, mas não posso fugir à dureza das palavras: hipocrisia e ridículo, é o que se pode dizer em face da legislação que tem sido editada sobre a gravíssima situação sanitária do País, como o poderia dizer a propósito de tanta outra legislação. E digo-o quanto à que surgiu esta madrugada.
Trata-se de situações da maior importância, em que estão em causa valores vitais, porquanto mais do que o cercear liberdades de circulação, trata-se de se decidir sobre a vida humana.
Ora uma legislação que recai sobre a vida e morte pode ser o que esta é, este caos de sucessivas modificações de preceitos, remissões cumulativas de uns artigos para outros, esta confusão que torna a lei ilegível, primeiro, imperceptível depois, e a somar ao horror, confusa, insegura, apta ao arbítrio dos malabarismos da interpretação, à impunidade e à repressão?
Poder, pode, e é o que aí está!
Passavam 13 minutos da meia-noite quando o Diário da República electrónico trouxe a Resolução do Conselho de Ministros n.º 76-A/2021, que altera as medidas aplicáveis a determinados municípios no âmbito da situação de calamidade. Está aqui.
De acordo com o que está nela escrito entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação; ora como foi publicada já depois da meia-noite, o dia seguinte é Sábado. A ter ouvido o que foi dito pelo Governo aplica-se a partir de hoje Sexta-Feira. E um dos seus preceitos, respeitante à limitação à deslocação ou circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa diz, aliás, que passa a vigorar na tarde de hoje, dia, afinal, da própria publicação.
Comentários para quê? Quem lê percebe de imediato o absurdo; o que talvez haja para perceber é em que medida tudo esse absurdo é expressão da perda de autoridade das leis, o tanto fazer que ainda não vigorem legalmente como, insidiosamente se possa presumir que já estão a vigorar. Ante o primeiro polícia que mandar parar, o primeiro fiscal que se decida a autuar, o problema aí está ou talvez nem esteja e siga!
Uma lei com este perfil teria de ser clara, legível pelos cidadãos com o mínimo de instrução, para que a percebessem, interiorizassem, guiassem a sua conduta em função dela; para que, a autoridade soubesse o limite em que o cidadão já está a abusar, e os cidadãos pudessem defender-se dos possíveis abusos da autoridade.
Mas clareza é o que não há, com todos nós a fingir que o tema não existe, o cidadão que ainda se interessa e as forças de segurança que ainda se preocupam a vogarem à tona neste mar de incertezas.
Estamos no universo da opacidade, no charco do incompreensível.
Fosse só isto, este universo labiríntico de faz de conta, mas não é.
O ridículo leva a normas aracnídeas como esta em que até a gramática é ofendida: «A cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual, do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, por violação do disposto nos artigos 3.º-A, 9.º, 39.º e 49.º do regime anexo à presente resolução e, ainda, do confinamento obrigatório por quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º do referido regime».
A própria norma, mais do que restritiva ela é sobre a liberdade de circulação, está redigida na lógica regra/excepção/adaptação que torna a norma pântano de ambiguidade e uma oportunidade a desobediência inconsciente: «É proibida a circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa no período compreendido entre as 15:00 h do dia 18 de junho e as 06:00 h do dia 21 de junho, sem prejuízo das exceções previstas no artigo 11.º do Decreto n.º 9/2020, de 21 de novembro, as quais são aplicáveis com as necessárias adaptações.»
Ou seja: proíbe-se, mas há excepções que devem ser aplicadas com as devidas adaptações!
E, no entanto, tem somado e seguido a obsessão legisferante.
Só para se ter uma ideia do carácter torrencial dessa legislação basta consultar o portal da folha oficial onde se lê: «Uma das principais novidades e funcionalidades deste portal é a área dedicada à legislação sobre a Covid-19, onde é possível consultar as mais de 1200 medidas publicadas desde março, tanto por área temática, como por ordem cronológica. As medidas são atualizadas imediatamente após a sua publicação, alteração ou regulamentação e são disponibilizadas versões consolidadas (que reúnem todas as alterações num único texto)».
Sim, precisamente, 1 200 medidas legais desde Março de 2020. E, no entanto, em matéria de saúde pública face à pandemia, estamos como se vê: tudo foi permitido e proibido e permitido, consoante.
Ante isto, o português comum, que não tem um mestrado em legística, guia-se pelos jornais, tenta perceber pelo pequeno écran. E neles alcança que o Bastonário da Ordem dos Advogados vem proclamar que isto é tudo inconstitucional. E fica informado quanto a, segundo uma das senhoras ministras, isto não ser uma «cerca sanitária», sem que consiga lograr a diferença face ao que é uma cerca sanitária. E ouviu o Chefe do Estado dizer que com ele não se recuava e aqui estão ambos, ele e o recuo.
E depois pergunta-se se uma Resolução do Conselho de Ministros é lei que possa vincular em matérias como esta e os juristas com doutoramento em Direito hesitam em responder.
Que vergonha! Houve em tempos para aí uma iniciativa governamental chamada SIMPLEGIS. O lema era «menos leis, melhor acesso, mais aplicação». Uma das medidas era tornar as leis mais claras, mais compreensíveis, porque isso era um direito de todos. Está à vista, não está?
Ai, pois, daqueles a quem tudo isto se destina: cegos guiados por loucos, resta-lhes esperar, esperar que não lhe surja no encalço a autoridade munida destas ditas leis e do poder de perseguir.
O Estado tornou-se prepotente porque o cidadão se tornou subserviente. No final do dia, fica tudo bem. Fiscaliza-se pouco e escapa-se muito.
Problema são aqueles que são apanhados na rede da lei em hora de má sorte, gravíssimo problema o daqueles cuja vida está mercê disto, de tudo isto! Para estes haverá discursos oficiais, compungidos e de circunstância, essa também, mais uma pandemia.
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