25.5.23

A morte abreviada e seus tormentos


Manda a honradez que diga: seja eutanásia, seja morte assistida, tudo quanto seja a vontade de uma pessoa sobre a sua própria sobrevivência ou a vontade de outros, subrogando-se à do próprio, encontra em mim um fundo reflexo de rejeição.

Poderia ser religiosa essa recusa, assim eu tivesse religião de que me reconhecesse fiel; ou ideológica, assim houvesse estrutura política a que pertencesse; ou filosófica, fosse membro de agrupamento com tal natureza. Não é. Trata-se da expressão existencial, diria, de uma reflexão pessoal e íntima. É um problema de mim comigo mesmo.

Não é, porém, resultado de individualismo; antes pelo contrário, exprimo o que verifico ser tanto da sociedade concreta em que estamos.

Primeiro, um princípio que não consigo ultrapassar: a nossa vida não nos pertence. O próprio verbo pertencer com a carga possessória que arrasta, é alheio e ofensivo àquilo de que estamos falando: o ser humano é insusceptível de apropriação, à liberdade junta-se, como sua essência, a dignidade que o impede.

Não tendo o amparo transcendental de um Ser que seja da vida origem e destino, julgo, no entanto, que, sem que tantas vezes tenhamos disso consciência, a nossa vida faz sentido para quantos nesta Terra nos tomam como amparo e referência, aqueles para quem somos arrimo, os outros que a nosso lado comungam da mesma luta pela sobrevivência e por ideais que tentem garantir um melhor mundo. Só quem não viveu a dor solitária e anónima de alguém a quem a ausência de outrem é vazio e desespero relegará este princípio para a categoria das secundárias circunstâncias da pieguice.

Segundo, vivemos a tragédia de um mundo em que no interior de tantas famílias se semeou a violência e a agressão, o egoísmo e a cupidez, famílias em que, na hora da herança a dividir-se, mostram os dentes da sua verdadeira natureza feroz, famílias para quem os velhos e os doentes são um fardo insuportável ou um tempo inútil até à abertura sucessória.

Mais: vivemos uma circunstância histórica em que a vivência doméstica se faz, para tantos milhares, em casulos raquíticos onde se acumulam, em sobreposição explosiva, a geração antecedente e a subsequente, em promiscuidade, sobrecarga de encargos, ante a penúria de meios, somando ressentimentos e alienações.

Como não pensar que, para esses amaldiçoados pela carência, o doente terminal não esteja para além dos limites da suportabilidade e uma janela que a lei abra possa surgir como uma forma, cruel que seja, dolorosa mesmo para a própria consciência, de libertação?

Não só nas famílias, porém. Temos hospitais sobrelotados de doentes e a urdir-se, uma lógica que campeia em certa doutrina administrativa em que se pondera, como vector da racionalidade gestionária do sistema, o custo doente/cama ocupada/expectativa de sobrevivência.

Como não temer que, nesta perspectiva mercantilista das coisas surja quem, em pura aritmética, sobrepese o encargo público dos casos perdidos e onerosos, face à possibilidade de alocar meios aos que, em selecção dos mais aptos, ainda possam ser convenientemente assistidos?

E não digam que há fantásticas famílias e notáveis profissionais de saúde, estóicos, dedicados, jogando amor e esforço para além de todos os limites e vencidas as exigíveis obrigações. Sei que sim, mas não é por esses que os demais deixam de existir. E, em verdade, sabemos que existem, uns e outros.

Enfim, há, seguramente, a dor, a doença que martiriza o corpo e rasga de comoção a sensibilidade de quantos a isso assistem. Convocar-se-ão aqui os argumentos dos bons sentimentos, a alegação de que uma morte moralmente higiénica gera a assepsia nos remorsos possíveis. E se medicamente legitimada, se desejada pelo próprio ou por alguém por si, se confirmada a vontade, o que haveria então a barrar o caminho a esse abreviar do fim, condenados que estamos, afinal, todos, a ir deste local transitório onde ganhámos forma humana pela vida que nos deram?

É este o ponto nevrálgico do problema. À moral sacrificial, em que se assume o destino, cruel que seja, até ao último alento, sucedeu hoje o hedonismo pelo qual, breve que é, e passageira, a vida é para ser gozada e, triunfo do reino da quantidade, quanto mais, melhor.

Como pedir aos que carregam já a sua carga de responsabilidade e de traumas que coexistam com mais este esforço derradeiro e garantam a uma vida a escoar-se a naturalidade de finar-se quando tiver de ser, sem mão humana que corte do fio invisível o laço que a sustenta?

Chegado aos 74 anos já vi a morte nos olhos. Sobrevivo, tendo visto morrer. Por nada deste mundo desejaria ter de decidir. Chamaria a mim a dor terminal alheia para não ter que sofrer a dor de a suprimir, eliminando a vida dolorosa.

Está aprovada uma lei pela qual a morte voluntária passa a ser possível.

Sei que quanto escrevi tem pouco de jurídico, no sentido esquálido e descarnado a que o positivismo reduziu o Direito. Tenta, porém, em apelo vindo das entranhas de mim, ser o que de humano o Direito tem de supor, ou eu, sem isso, não o entenderei jamais e perder-lhe-ei irremediavelmente o respeito.

+
A foto é de um quadro de August Friedrich Albrecht Schenck, pintado em 1876

18.6.21

Cegos guiados por loucos


Tento ser uma pessoa moderada, mas não posso fugir à dureza das palavras: hipocrisia e ridículo, é o que se pode dizer em face da legislação que tem sido editada sobre a gravíssima situação sanitária do País, como o poderia dizer a propósito de tanta outra legislação. E digo-o quanto à que surgiu esta madrugada.

Trata-se de situações da maior importância, em que estão em causa valores vitais, porquanto mais do que o cercear liberdades de circulação, trata-se de se decidir sobre a vida humana.

Ora uma legislação que recai sobre a vida e morte pode ser o que esta é, este caos de sucessivas modificações de preceitos, remissões cumulativas de uns artigos para outros, esta confusão que torna a lei ilegível, primeiro, imperceptível depois, e a somar ao horror, confusa, insegura, apta ao arbítrio dos malabarismos da interpretação, à impunidade e à repressão?

Poder, pode, e é o que aí está!

Passavam 13 minutos da meia-noite quando o Diário da República electrónico trouxe a Resolução do Conselho de Ministros n.º 76-A/2021, que altera as medidas aplicáveis a determinados municípios no âmbito da situação de calamidade. Está aqui.

De acordo com o que está nela escrito entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação; ora como foi publicada já depois da meia-noite, o dia seguinte é Sábado. A ter ouvido o que foi dito pelo Governo aplica-se a partir de hoje Sexta-Feira. E um dos seus preceitos, respeitante à limitação à deslocação ou circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa diz, aliás, que passa a vigorar na tarde de hoje, dia, afinal, da própria publicação.

Comentários para quê? Quem lê percebe de imediato o absurdo; o que talvez haja para perceber é em que medida tudo esse absurdo é expressão da perda de autoridade das leis, o tanto fazer que ainda não vigorem legalmente como, insidiosamente se possa presumir que já estão a vigorar. Ante o primeiro polícia que mandar parar, o primeiro fiscal que se decida a autuar, o problema aí está ou talvez nem esteja e siga!

Uma lei com este perfil teria de ser clara, legível pelos cidadãos com o mínimo de instrução, para que a percebessem, interiorizassem, guiassem a sua conduta em função dela; para que, a autoridade soubesse o limite em que o cidadão já está a abusar, e os cidadãos pudessem defender-se dos possíveis abusos da autoridade.

Mas clareza é o que não há, com todos nós a fingir que o tema não existe, o cidadão que ainda se interessa e as forças de segurança que ainda se preocupam a vogarem à tona neste mar de incertezas.

Estamos no universo da opacidade, no charco do incompreensível.

Fosse só isto, este universo labiríntico de faz de conta, mas não é.

O ridículo leva a normas aracnídeas como esta em que até a gramática é ofendida: «A cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual, do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, por violação do disposto nos artigos 3.º-A, 9.º, 39.º e 49.º do regime anexo à presente resolução e, ainda, do confinamento obrigatório por quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º do referido regime».

A própria norma, mais do que restritiva ela é sobre a liberdade de circulação, está redigida na lógica regra/excepção/adaptação que torna a norma pântano de ambiguidade e uma oportunidade a desobediência inconsciente: «É proibida a circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa no período compreendido entre as 15:00 h do dia 18 de junho e as 06:00 h do dia 21 de junho, sem prejuízo das exceções previstas no artigo 11.º do Decreto n.º 9/2020, de 21 de novembro, as quais são aplicáveis com as necessárias adaptações.»

Ou seja: proíbe-se, mas há excepções que devem ser aplicadas com as devidas adaptações!

E, no entanto, tem somado e seguido a obsessão legisferante.

Só para se ter uma ideia do carácter torrencial dessa legislação basta consultar o portal da folha oficial onde se lê: «Uma das principais novidades e funcionalidades deste portal é a área dedicada à legislação sobre a Covid-19, onde é possível consultar as mais de 1200 medidas publicadas desde março, tanto por área temática, como por ordem cronológica. As medidas são atualizadas imediatamente após a sua publicação, alteração ou regulamentação e são disponibilizadas versões consolidadas (que reúnem todas as alterações num único texto)».

Sim, precisamente, 1 200 medidas legais desde Março de 2020. E, no entanto, em matéria de saúde pública face à pandemia, estamos como se vê: tudo foi permitido e proibido e permitido, consoante.

Ante isto, o português comum, que não tem um mestrado em legística, guia-se pelos jornais, tenta perceber pelo pequeno écran. E neles alcança que o Bastonário da Ordem dos Advogados vem proclamar que isto é tudo inconstitucional. E fica informado quanto a, segundo uma das senhoras ministras, isto não ser uma «cerca sanitária», sem que consiga lograr a diferença face ao que é uma cerca sanitária. E ouviu o Chefe do Estado dizer que com ele não se recuava e aqui estão ambos, ele e o recuo.

E depois pergunta-se se uma Resolução do Conselho de Ministros é lei que possa vincular em matérias como esta e os juristas com doutoramento em Direito hesitam em responder.

Que vergonha! Houve em tempos para aí uma iniciativa governamental chamada SIMPLEGIS. O lema era «menos leis, melhor acesso, mais aplicação». Uma das medidas era tornar as leis mais claras, mais compreensíveis, porque isso era um direito de todos. Está à vista, não está?

Ai, pois, daqueles a quem tudo isto se destina: cegos guiados por loucos, resta-lhes esperar, esperar que não lhe surja no encalço a autoridade munida destas ditas leis e do poder de perseguir.

O Estado tornou-se prepotente porque o cidadão se tornou subserviente. No final do dia, fica tudo bem. Fiscaliza-se pouco e escapa-se muito.

Problema são aqueles que são apanhados na rede da lei em hora de má sorte, gravíssimo problema o daqueles cuja vida está mercê disto, de tudo isto! Para estes haverá discursos oficiais, compungidos e de circunstância, essa também, mais uma pandemia.

30.5.21

A roda das horas


Se há uma regra de comportamento deste blog é ter-se tornado intermitente. São circunstâncias da vida do seu autor que determinam tal modo de ser.

Excesso de trabalho na profissão, o que há pudor em dizê-lo numa altura em que, infelizmente, muitos colegas estão à míngua de oportunidades para satisfazerem os seus encargos, esse excesso é causa directa, mas aparente, afinal.

Sucede que, servida hoje por meios electrónicos, um computador com 16 GB de RAM e 2 TB de disco, com o arquivo alojado numa "nuvem", todos os documentos digitalizados, assinatura de tantas bases de dados que alojam informação relevante e com acesso on line, em suma, com a tecnologia supostamente a ajudar, tornei-me, e sei que nos tornámos escravos da profissão.

Há, evidentemente, a obsessão twitteriana de consultar em cada momento o smartphone para actualizar a informação sobre o que se passa no mundo, para além do nosso pequeno mundo, as newsletters que, uma a uma, se vão assinando, tão indispensáveis parecem, e que começam pela madrugada ao trazerem-nos as capas dos jornais e fecham à noite com o resumo do dia e inundam o dia com actualizações permanentes. Um amigo meu envia-me, em lote, dezenas de jornais, de que não leio um que seja, pois ler exigiria o dia inteiro. E agradeço muito, sem confessar-lho.

Há também o sem descanso das mensagens que chegam a todas as horas, dia ou noite, pelos mais diversos canais, do email, ao Whatsapp, deste ao Signal, pelo Telegram, pelo Skype, até pelo Messenger. E evito os podcasts, há semanas que não vejo televisão, raramente ouço notícias na rádio, na imprensa vejo o mais directo e passo adiante, poupando-me aos comentadores enciclopédicos.

Não é falta de interesse cívico, é apenas o dia ter vinte e quatro horas, cada hora sessenta minutos e, cada vez mais, cada minuto ter mesmo e apenas sessenta segundos. A angústia é eu ter setenta e dois anos já gastos.

Ante tudo isto, troquei as horas do dia, dei comigo a acordar às quatro da manhã, qual vigília monástica, sem cantar matinas, em alguns dias a trabalhar até perto das quatro, qual coruja noctívaga de triste piar.

E, no entanto, ficam por ler os livros que vou comprando, as revistas que assino, por escrever os livros de há muito iniciados, até os artigos que me atrevi a prometer. A ausência aqui é, pois, parte d euma insuficiência maior.

Claro que, neste admirável mundo novo, há o computador a fazer longas actualizações, o sistema operativo a crashar por conflitos de software, a internet em baixa, a espera até restabelecer o sinal e até lá o pavor de não ter feito um backup.

Mas há sobretudo um inefável não sei o quê a ter tornado a vida insuportável. Faço listas, planos, programo, divido as tarefas pelos dias, dentro destes o trabalho pelas horas. E passo cada vez mais expectativas para o dia seguinte, promessas para logo que possível.

Comprei um fantástico livro do Umberto Ecco intitulado A Obsessão das Listas, magnificamente ilustrado. Folheei-o sem ler. Está ali, na estante, a servir de consolo.

Outrora a chegada do correio marcava o dia, a carta em papel era a má consciência do dever por cumprir. Além disso, era tudo lento. Tinha uma máquina de escrever, um telefone analógico em que se discava o número. Assinava fichas com jurisprudência, mensais, em cartolina azul, colava as actualizações aos códigos, cortando fotocópias da folha oficial e anotando à mão o sentido da mudança.

Tínhamos, porém, tempo, mais tempo.

A contemporaneidade é andar mais depressa num lugar cada vez mais pequeno, como ratos enlouquecidos na roda da incessante busca.

Outro dia, num julgamento, alguém, não importa quem e tão amigo foi, veio amigavelmente fazer-me saber que lia este espaço. E animar-me a que continuasse. Quase envergonhado terei murmurado: assim tenha oportunidade.

É claro que as redes sociais são espaços de liberdade; quando temos leitores há, porém, um difuso dever de corresponder à gentileza, sobretudo quando o que escrevemos visa dar aos outros o que encontrámos.

Vim, por isso, aqui, neste Domingo.

A inércia soma-se ao cansaço. Não sei sobre o que escreverei. Outra faceta da actualidade é parecer que está tudo dito, na variante perversa de aparentar ser inútil dizer seja o que for. Ante um mundo tão vocal, o silêncio tornou-se refúgio ou ao menos sinal de boas maneiras.

7.6.20

Livre pensador

Ter uma filosofia sem ter de alinhar com uma cátedra menos ainda ser discípulo, uma transcendência que não se torne religião nem, depois disso, Igreja, uma ideologia política e não pertencer a partido ou em alternativa a isso, movimento.
Ler imprensa de sinal conservador e descobrir que há no outro lado do que se leu até agora interessantes rupturas sem terem de ser repugnâncias; procurar em publicações anarquistas a sinceridade do ímpeto por entre o irrealismo do que propõem; folhear e não ler porque nem tudo quanto se publica tem de ser lido.
A  nada ser alheio e a tudo estar atento.
Não é bandeira nem programa ou catequese: não visa convencer quem seja, apenas declarar onde estou.
Outro dia, a propósito do falecimento do Embaixador José Cutileiro, um certo jornal centrava a narrativa em tudo quanto o situava à esquerda para o alinhar com a base de apoio dos seus leitores. 
Redimindo-me por ter estado desatento a mais do que as suas crónicas, e nem todas, e aos Bilhetes de Colares, que no princípio nem sonhava serem seus, comprei e li na íntegra o pequeno livro Abril e outras Transições, livro de matriz autobiográfica, como no-lo anuncia o subtítulo Reminiscências de um antropologista errante. Editou-o a D. Quixote em em 2017 e era, "incontornavelmente" citado,  como ora se diz, no jornal em questão. E logo aí tropecei com a frase: «O país mais parecido com o Portugal democrático de depois do 25 de Abril, dia que deu nome à ponte sobre o Tejo entre Lisboa e Almada, era o Portugal não democrático de antes do 25 de Abril, quando a ponte se chamava Salazar».
Claro que a boutade serve a observação «como outro povos por esse mundo fora os portugueses gostam pouco de mudanças», o que fundamenta a tese do autor: «o Estado Novo não havia durado 48 anos por acaso».
Mas mais claro ainda é que está nos antípodas do pensamento que o jornal recorta.
Enfim, dir-se-à, em jeito de caridosa explicação, será um pequeno desvio de direita numa obra de esquerda; mas, porque não dizer que o mundo é menos monocromático do que julgam as almas simples e aquelas outras a quem se impingem sobre-simplificações, afinal «o vandalismo cultural e cognitivo que hoje campeia» que ele refere quase a encerrar o seu opúsculo e Cutileiro vai tendo, no irrequieto polimorfismo do seu pensamento, um pouco de todos os azimutes.
Obra de ironia ao jeito britânico, Oxford deixou-lhe marcas, é escrita de quem, em matéria de agnosticismo se declara «livre-pensador não por ter pensado, mas por ter pensado» e assim, com a inteligência de quem se ri de si mesmo, 
Vale a pena, em suma, sair do carril e metermo-nos por atalhos, ainda que sozinhos, mesmo quando incompreendidos, porque a mudança da paisagem enriquece a alma e sentimo-nos a palmilhar entre desconhecidos que só a liberdade permite e a aprender a conhecer o mundo de todos os outros.

+
Fonte da imagem aqui

24.3.20

Retorno ao primordial

Há momentos em que se retorna ao primordial. Este espaço foi criado numa lógica de intervenção cívica revoltosa e contestatária num tempo em que grassava em muitos sectores da vida portuguesa complacência, monotonia, indiferença coexistente.
O título, "A Revolta das Palavras", que fui buscar a um livro de Maria Ondina Braga - melhor exemplo não haverá do que a desolação interior como censura desesperada à crueldade circundante - volta a inspirar.
O mundo massificou a contestação, as redes sociais criaram a algazarra, a permissão do anonimato, quando não dos falsos perfis, abriram a porta ao insulto soez protegido pela cobardia. O nível geral da discussão tornou-se miserável, a troca de ideias substituída pela troca de insultos. O pouco que foi sobrevivendo tornou-se cubículo para iniciados ou esconso para adeptos, lugares perdidos no labirinto da banalidade.
O mesmo mundo que tudo isto permitiu relativizou a conceito de verdade, gerou a total permissividade mas, simultâneamente abriu portas à submissão ao conveniente: diz-se tudo de todos e de toda a forma desde que não se toquem nos novos tabus politicamente correctos, protegidos que estão pelos novos censores.
Hoje está tudo manso porque grassa ao medo, mas já começa a despontar a epidemia do "nada estar nunca bem", versão post-moderna da história do "Velho do Rapaz e do Burro".
O último texto que aqui deixei, a 15 de Fevereiro de 2018 dizia o que direi hoje. Muitos dos seus antecedentes relatam o que ainda hoje penso.
Regresso aqui porque, encerrados os que podem estar confinados às suas casas, reflectimos ante o que se passa, isto os que não se alienam com trivialidades soporíferas; os outros, esses têm de enfrentar risco de vida para permitirem que nos chegue aquilo de que precisamos, nós, os enclausurados. Estão aí, atrás de balcões, em motos, em camionetas, em autocarros, distribuindo, transportando. Aviões que ainda circulam, barcos que não são só cruzeiros para alguns.
Quando sofremos as agruras psicológicas da reclusão deveríamos pensar nos que estão na linha da frente do combate à doença, mas também naqueles que estão na linha da frente ao serviço das primeiras necessidades e das comodidades que ainda circulam. Heróis pelo dever, heróis pela necessidade.
Humildade, eis o conceito que falta, assim como falta a capacidade de saber sofrer em contenção.
Saídos há duas semanas do mundo do "curtir", da terra do "tasse bem", somos incapazes de encarar o estar-se mal e preparar-nos para o vai estar péssimo.
Todos os indicadores económicos e financeiros mostram que o Estado-providência não está preparado nem tem capacidade para resolver tudo; o nosso Estado e o Estado que governa outras nações.
Quem está atento, avisa que passada a devastação iremos encontrar-nos em tanto como a Europa do pós-guerra nos países que não tiveram o conforto da neutralidade e o nosso teve, por mais ingratos que tantos se mostrem quanto ao que isso significou paras as gerações que nos antecederam.
Aqui estou, onde não vinha há tanto tempo, com este texto atabalhoado pois traduz um sentimento.
Há fidelidades que não se perdem. 

15.2.18

Regresso às origens!

Comecei a minha vida no ciberespaço precisamente aqui na Blogger e com este blog. Hoje o mundo das redes sociais desdobra-se em variantes múltiplas. O fenómeno está mais do que diagnosticado em todas as suas vertentes.
A primeira, a do vício que tal gera, a multidão de adictos que não há minuto que não estejam a ler o último twitter, o último post do FB ou do Linkedin, a última foto do Instagram, ou do Pinrest, o último email, o flagrante Snapchat e sei lá quantas mais. A próxima geração deve nascer com as mãos em garra apegados ao smartphone.
Surgem já programas de detox para esta situação que começa a causar distúrbios de concentração, cansaço mental, surgimento de sentimentos rancorosos e de exibicionismo. Mais os predadores e os hackers.
A segunda, a da facilidade dos escritores, pois cada um tem ao seu dispor, não um mas N jornais virtuais, onde verte da sua vida privada ao que sente da vida pública, difunde notícias que, afinal, não são confirmadas ou são, vista a data, mais do requentadas e até as que foram desmentidas e tudo gera controvérsia e paixões e animosidades. E em que se confunde o importante com a minudência.
Enfim, os sistemas de poder que aproveitam para se infiltrarem e gerarem fenómenos de intrusão, de insinuação, de aquisição de produtos ou adesão a ideias e causas.
Conheço tudo isto, porque em tudo isto tenho participado.
As redes sociais exploram duas fraquezas humanas: o nosso desejo de sermos queridos, e daí os «like's» e a nossa crença no que vem escrito e daí a convicção fácil.
Ante isto, o caos, estabeleci alguns limites, fruto da experiência.
Comecei a circunscrever o que da minha vida pessoal e familiar divulgo, tentando poupar-me e aos meus ao voyeurismo
Passei a dosear o número de vezes que consulto o correio electrónico, a partir do momento em que interiorizei que, outrora, o correio vinha uma - algumas vezes e em em alguns lugares duas - vezes por dia e aberta a carta em papel, lia-se com calma e respondia-se depois, com tempo, enquanto hoje ele chega pelos emails, pelo messenger, pelo skype, pelo whatsapp, pelo linkedin, pelo sms e o mais que haja que seja janela ou porta electrónica por onde nos mandem bilhetes e anexos, a esmagadora maioria urgentíssimos, à espera de resposta logo a seguir, tudo a afundar-se, uns a seguir aos outros, os de mera publicidade misturados com os definitivamente importantes.
Além disso, limitei o número de alertas sobre notícias, por chegarem em catadupa, numa incessante cacafonia de redundâncias, a mesma disparada por tantos quantos os órgãos de comunicação social de que me fiz aliciado seguidor.
Enfim, comecei a sentir que tinha deixado de escrever e vivia mais em função do copy paste.
Mesmo assim, a luta continua.
Como o FB mudou o algoritmo, perdendo clientela publicitária, em nome da ideia de que foi criado para fomentar a coesão humana quando estava, afinal, a ser fonte de atritos, agora são são os poucos mesmos que me surgem quando lá vou. Como nunca li notícias que chegavam, replicadas, por esta rede social, nunca vivi entre a explosão sentimental e a desilusão. Mas nem entendo bem o que se passa agora e qual o critério pelo qual alguns são escolhidos, outros rejeitados, mesmo os que escrevem o que vale a pena ler. E nem sei bem para quem escrevo, náufrago a jogar, ao mar incerto, bilhetes dentro de uma garrafa.
Em suma, é tempo de abrandar pensar.
Volto pois aqui, onde comecei. Fui criando vários blogs, espécie de mundo em gavetas, em cada uma arrumando uma faceta do meu ser plural. Alguns são de frequência incerta, até porque ao entusiasmo não corresponderam os meios para o sustentar, nisso incluindo o tempo disponível, devorado pela profissão e esgotante é a minha. Esta noite senti que talvez fosse o lugar ideal. Escreve-se com calma, texto mais pensados. 
É uma nostalgia, mas é ânsia de descansar a alma. Estou saturado de informação a mais sobre um mundo que cada vez compreendo menos.

11.6.17

Os açambarcadores

Tinha decidido suspender este blog, talvez por me ter retirado da intervenção cívica, tantos são aqueles que a isso se entregam, entre eles os "tudólogos", que sobre tudo e mais alguma coisa têm opinião e, pior ainda, querem "criar opinião", os "fazedores de opinião". Voltei hoje, por ser de revolta o sentimento que me povoa e este o local apropriado para o expressar.
+
Desde pelos menos 1989 - digo bem 1989 - com longos interregnos, mas sempre com expressão pública, nos jornais, em livros, alimentando dois blogs, tenho-me dedicado a estudar as redes estrangeiras da guerra secreta em Portugal entre 1939 e 1945. 
+
Recuso dizer que escrevo sobre «espiões», por achar que isso reduz o tema ao novelesco, tornando aparência de fantasia o que é, afinal, sério. 
+
Cumulo esse trabalho às exigências esgotantes da minha profissão. Nunca tive bolsa, subsídio, apoio, foi tudo pago a expensas minhas, as centenas de livros, cópias de documentos, viagens, o custo da edição de muitos deles. Os magros proventos como autor foram uma minúscula gota de água em todo o dispêndio, que tirei a mim e aos meus.
+
Tenho coexistido pacientemente com a conspiração de silêncio em torno do que escrevo e divulgo. Faço de conta que não tenho importância e por isso a finjo entender como merecida a omissão alheia, reduzo-me à humilhação que são todos encartados menos eu, daí que não mereça sequer a gentileza de um pé de página. A poucos devo terem dado conhecimento a quanto tenho produzido.
+
E, no entanto, nunca quis grau académico ou prémio literário, investiguei e escrevi por entender,  que se tratava, a princípio, de tema nada conhecido, depois, de assunto indevidamente estudado, frequentemente baseado numa leitura superficial de documentos, documentos, diga-se, produzidos numa área em que tudo foi feito para gerar engano e confusão, testemunhos orais incertos e amiúde em segunda mão.
+
Começou, porém, a surgir a apetência pelo assunto, pelo lado mais fácil do mesmo, incluindo todo o cortejo de asneiras, como ter Ian Fleming criado o 007 no seu primeiro romance a pensar no Casino Estoril, ter Graham Greene tido escritório em Lisboa, como "espião". E tanto mais. Isso e as falsificações da História ao serviço da ideologia, que orientam livros que assim alcançam sucesso fácil, por se integrarem no politicamente correcto.
+
Vergado a tudo isto, tenho-me calado, mesmo quando vi escritores de renome a nível internacional que não conseguem ler uma linha da nossa língua ousarem escrever sobre a matéria e encontrarem aqui o clap clap saloio do aplauso, expressão do nosso complexo de inferioridade face a quanto é estrangeiro.
+
Esta noite, porém, achei que tudo tem limite e a minha paciência não é infinita. É tempo, pois, de dizer basta.
+
Vejo-me citado e até agradecido em livros publicados no estrangeiro. Esta noite, regressado, depois de um dia de esgotamento a trabalhar na minha profissão, encontrei outro. A autora, italiana, escrevera-me em 2010, publicou o livro em 2014, dei conta da sua existência por acaso. E ali me vejo respeitado no esforço que fiz em torno do tema que é um dos capítulos dessa sua obra. 
+
E comparo com o tem sido o tratamento que me tem sido dispensado no meu país por concidadãos meus, que estando agora em torno do mesmo assunto, tudo fazem para que se não saiba que eu existo, os açambarcadores.
+
Há excepções, honrosas, eu sei, pessoas cuja probidade levam a não ignorar. E há, a ter-me tolhido o passo, pensar que poderá ser interpretada como vaidade uma atitude como esta. Mas, se a gratidão aos primeiros, não fica em causa, o desinteresse ante o que possam outros pensar deste grito de revolta deixou de ser freio a dizer quanto penso, quanto sinto. E aqui fica.
+
Ontem foi Dia de Portugal. E será por isso dia para perguntar em que espécie mesquinha de portugueses nos tornámos, que rebaixamos tantos dos portugueses que há, silenciando-os, cortando-lhes o direito de expressão, pisando-os, para que uns quantos se ocupem do território, magros os ossos enraivecidos os cães? 
+
Jovens há que emigram por isto mesmo. E eu, que tenho já só um resto de vida para viver, e remorsos ante tanto que deixei por fazer, mas tenho esperança de encontrar força, alma e meios para o completar é aqui, aqui mesmo, na terra do desprezo, que tenciono ficar.
+
Eis o que, iradas palavras, fiz questão de denunciar aqui.

23.12.15

Termo de encerramento


Comecei este blog em Dezembro de 2004. O título fui buscá-lo a um livro de Maria Ondina Braga, a quem hoje dedico um espaço e o desejo de o ampiar. Era nome de uma crónica que subscrevi no Diário de Notícias.
Desde aí mantive-o com alguma regularidade. Era aqui que depositava as minhas opiniões cívicas, tendo explicitado que isso era, na minha ideia, mover-me num terreno mais vasto do que o da política.
Com a passagem do tempo foi-se acumulando a ideia de haver tantos a opinarem sobre a vida social - e afinal sobre tudo e mais alguma coisa - que menos um não fazia diferença; além disso havia progressivamente mais comentadores encartados e com lugar cativo e, por isso, audiência segura, pelo que o que pudesse ir escrevendo - e tal sucedia cada vez mais ocasionalmente - ia pouco além de um aparte em casa de amigos complacentes.
A tudo isto junta-se hoje a incapacidade completa de me entender com o que se passa na vida política do que se chama ainda "democracia" e que pode ser tudo mas não é seguramente a participação activa da colectividade na vida pública: partidos que pareciam ter perdido eleições e afinal governam, partidos que afinal saíram, como se derrotados, mas que apoiam o que parece liderar a governação, coligações que não se esperavam mas que permitiram chegar ao poder e que, uma vez neste, desamparam o partido com que se coligaram; tudo mais a completa ausência de ideologia, os programas dos partidos a nada terem a ver com aqueles com que se apresentam a eleições e ambos muito diferentes face ao que tornam programa de governo.
Restam as eleições presidenciais mas, confesso, sobre elas nem sei o que pense, nem sobre os candidatos e o modo como me vou dando conta do modo como se apresentam.
Dir-se-á que se trata de ingenuidade minha, pois que a política é afinal, isto mesmo, a indefinição, o arranjo de ocasião, a mutação permanente em nome do pragmatismo, o triunfo da realidade e não das ideias, menos ainda dos ideais.
Seja assim. Não quero ter razão. Tê-la seria significar que ela teria qualquer utilidade.
E por admitir que é assim que tudo se passa e por verificar que com tudo isto se convive mesmo com a apatia da abstenção eleitoral, retiro-me para o território do silêncio. Na vida pública ter para dizer é, pela manifestação da livre opinião, um contributo para um melhor futuro.
Não que a sorte dos meus concidadãos me seja indiferente, sim porque em consciência acho que, para além da lamúria moralista, pouco contributo trarei tais as perplexidades que tornaria crónica. Para isso era preciso que eu conseguisse entender-me com o que se passa e não sentisse este estado de alheamento.
Não direi que sou de um mundo de ontem. É verdade que na juventude dos meus vinte anos talvez o maniqueísmo com que fazia activismo me fosse mais reconfortante. Hoje, ante partidos que são expressões de revolta sem ideologia, movimentos espontaneístas sem história nem programa que, num ápice, partilham do poder a capacidade do mando, junto confusamente o pessimismo conservador ao optimismo revoltoso. E não tenho esperança. Uma profunda revolução talvez nos salve da profunda decadência em que caímos como civilização. Nenhum dos "ismos", tendo gerando hecatombes e carnificinas, se mostrou solução para a vivificação do Homem Integral.
A quantos tiveram a gentileza de ir lendo e tantas vezes tributaram palavras de generosa amabilidade aqui fica a expressão pública da gratidão. Há na vida pública um tempo para saber que o tempo deixou de ser o nosso tempo.

13.10.15

A "chapelada"


De 1966 a 1974 lutei pela democracia, como mo permitia o ser jovem. Era-me impossível conviver sem revolta com um regime político que amputava as liberdades públicas, impunha censura à imprensa, apreendia livros, congelava a participação política num partido único, semeava a sombra de informadores e outros esbirros, prendia por delitos de opinião, apodava de "comunistas" todos quantos não eram pela Situação. Paguei por isso o preço de me ter sido negado o acesso à magistratura e ter sido castigado militarmente com uma arma que não era obviamente para pessoas como eu, magríssimo de peso e soldado cadete de "armas pesadas de infantaria".
Com a democracia dei o contributo que me foi possível nas funções para que fui convocado. Nunca se me colou um lugar às mãos.
Hoje penso que chegou a altura de recolher.
Progressivamente fui diminuindo a participação na vida política. Limitava-me a votar e cada vez com menos convicção.
Nestas eleições aflui à mesa de voto que julgava ser aqui na Universidade Nova, à Avenida de Berna. Recambiaram-me para a secção de voto junto à Mesquita em Lisboa. Lá, estando certo o número da mesa, não constava dos cadernos eleitorais. Teria de me esclarecer na junta de freguesia, devido à unificação desta com outra. Para ali fui, para apurar que, afinal, teria de votar no lugar onde inicialmente tinha estado desde a manhã.
Nove dias depois, os partidos estão a fazer dos resultados dessas eleições o que lhes convém. Apoderaram-se do voto e as direcções partidárias interpretam o sentir popular num sentido e no seu contrário. Em resumo todos ganharam. Eu sinto ter perdido.
Não estamos longe dos gregos em que se tornou um "não" num "sim".
É deprimente o espectáculo de incerteza e o circo que se armou em torno do que é afinal a sorte do País.
Se isto é a democracia, prefiro abster-me. Não foi para isto que se fez o 25 de Abril!
Em 1969, tinha 20 anos, fui, orgulhosamente, delegado a uma mesa de voto. Morava na Amadora. Devido a ordens dos que então mandavam, capitaneados por um façanhudo regedor, nós os delegados, estávamos encurralados, numa espécie de ringue de boxe, delimitado por uns cordões, no meio da sala da junta de freguesia. Em frente a nós, tapando-nos a visão, a massa compacta dos votantes. Protestei porque, assim, não se saberia o que resultaria das urnas. Levava comigo um dossier que tinha sido preparado para o efeito. Quando consegui entregar ao presidente da mesa o meu protesto este, erguendo-o ao ar, proclamou «olha-me este, já começa a arranjar sarilhos!».
De facto. 
Hoje, ao ver os novos regedores e o que fazem das urnas, nem sei como poderia arranjar sarilhos, protestando contra a "chapelada", muito menos com quem.

22.8.15

Bicicletas para funcionários, patins para o Governo


[publicado por lapso originariamente no meu blog homónimo] Não falo aqui da minha profissão, mas foi por causa dela que estive hoje numas miseráveis - é o termo, miseráveis - instalações da PSP, indignas para uso de um organismo do Estado que desempenha funções de autoridade, ofensivas para os agentes da força pública que ali trabalham em condições aviltantes, abjectas para os cidadãos que ali têm de comparecer.
E foi ali mesmo, num televisor colocado na sala de espera, que o vi, um fulano que dizia o rodapé da imagem ser ministro, a dar conta de que o Governo vai incentivar os funcionários públicos a irem para as suas repartições de bicicleta.
Sim, de bicicleta como se o País fosse a Holanda e não, logo por falar em Lisboa, a das Sete Colinas, Coimbra a do Quebra-Costas e tantos outros lugares em que a tração animal se vê em tratos de polé para vencer o declive.
Nem sei, confesso, que sentimentos me atravessaram.
Logo o primeiro podia ser político, eu que ando afastado da política activa: para um Governo de um partido que se vai apresentar a eleições e que salteou a bolsa dos funcionários - mais a do que os demais cidadãos, e mais ainda a dos reformados - com sacrifícios insuportáveis, reduzindo-lhes o poder de compra e só tendo sobrevivido à ira porque reina na função pública a contenção verbal por amor à sobrevivência, que um acto intempestivo faria o recalcitrante perder o emprego, estando a maioria dos servidores públicos vergonhosamente em regime precário e a recibo verde, um Governo desses, dizia, como é este, vir agora carregar-lhes com o achincalho de irem para o trabalho de bicicleta, é, de facto, estar a pedi-las em termos de resultado eleitoral.
E não se diga que se trata de um programa ambiental, porque a mensagem que passa não é essa, porque a ser assim, sugeririam que utilizassem todos e não os funcionários mais transporte colectivo e menos transportes individual, e, a tornarem-se ciclistas os que andam a quatro começassem pelos governantes.
Mas confesso que foi a sensação de estar ante o ridículo o que me assaltou, lembrando-me de uma velha história anedótica que se imputava aos tempos do salazarismo, e tradutora do espírito da época. Assim, rezava a crónica, que um funcionário dos tempos "da outra senhora", sequioso de bajular Sua Excelência, o Presidente do Conselho de Ministros, tendo tido a rara oportunidade de se abeirar dele lhe teria dito, louvaminheiro: «Sabe, Senhor Presidente que hoje, fiel à política do Estado Novo de produzir e poupar, vim para a repartição a pé e não de eléctrico, como costumava fazer, e assim poupei oito tostões», ante o que, Salazar, o estilo frio e manhosamente desconfiando ante tanta lisonja e subserviência, lhe retorquiu, enfrentando o espanto do inesperado interlocutor: «pois fez mal, fez muito mal, porque se em vez de vir a pé em troca do eléctrico, tivesse vindo a pé mas a correr a trás de um táxi tinha poupado vinte e cinco tostões».
Eis o que, hoje, naquele ambiente de apoucamento e ridicularização da função pública, como senti as palavras da criatura que será ministro.


Há limites para tudo, de facto, até para a falta de decoro. Permito-me, aliás, supor, que se em vez de bicicleta, lhe calçarem os patins, ao autor da fala e o mesmo a outros como ele, aí sim o País poupa e bastante, pelo menos no efeito de ideias delirantes, estas e outras que tais como ela.

11.3.15

Uma manhã, a 11 de Março


Naquele dia, pelo fim da manhã, o telefone tocou no Ministério da Justiça. Era ministro Francisco Salgado Zenha, eu seu Secretário. Atendi a chamada. Era a notícia de que um avião T 6 sobrevoava o RAL 1 na Portela de Sacavém. Algo de grave se estaria a passar. O major Dinis de Almeida montara um dispositivo de tiro sobre a entrada em Lisboa. Avisei o ministro, que estava em Conselho de Ministros. Não sei se já saberiam. Com o passar dos minutos a tensão aumentou. Umas horas depois notícias de que se poderia entrar em conflito generalizado corriam desencontradas. Os locais nevrálgicos, sedes do Governo estavam em perigo. Ante a ameaça de um golpe de mão abriu-se um armário que se situava no corredor, que dava acesso ao gabinete do ministro e ao do chefe de gabinete. Estavam ali duas pistolas e uma metralhadora ligeira FBP. Foi-me atribuída uma, outra ao José António Pombinho, honrado cidadão de Portel, meu Colega então em funções, ex-director da Fazenda que o regime deposto havia demitido por razões políticas, cuja residência no Alentejo ostentava orgulhosa, mesmo anos depois, a bandeira do PCP.
Por ali ficámos à espera do pior. Felizmente não houve nenhum assalto ao Terreiro do Paço. Nesse dia o 25 de Abril rumava ao socialismo autoritário de Estado. Foi a 11 de Março.
A 12 de Novembro desse ano, tendo como missão ser Secretário do Conselho de Ministros, sob a presidência do Almirante Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro, fiquei entre os cercados na Residência Oficial. Foi o cerco à Constituinte. Treze dias depois tudo cairia: Angola passaria para a órbita estratégica da URSS, o seu Governo reconhecido sob a égide do MPLA. Hoje é o que sabemos e nos é dado viver.

8.3.15

As duas metades do mesmo Céu


Recuso-me fazer à Mulher a injúria de a considerar generalizadamente melhor do que o Homem, como outros a injuriam considerando-a sistematicamente pior. Ela é semelhante como pessoa, igual como cidadã.
Que o Estado, tido por democrático, ainda lhe não lhe garanta a igualdade, que na sociedade, dita liberal, sejam as mulheres tratadas diferenciadamente, essa é uma questão. E contra isso urge lutar, uma luta que é também uma luta de homens, antiga já, com resultados a evidenciarem-se, luta que passa também por muitas dessas mulheres contra si próprias, a sua submissão, contra os frutos da educação que receberam e a que transmitem aos seus filhos.
Como ser, dotada de inteligência e sensibilidade, credora de respeito pela sua dignidade, a Mulher não pode, porém, ser colocada na balança romana em que tudo se pesa, nem na craveira em que tudo se mede, pois ela não é um objecto sujeito às leis da comparação.
O veneno da sociedade contemporânea é esse mesmo, ter erigido o abjecto mundo da quantidade, em que tudo é número e aritmética, em que nada se concebe fora do mais e do menos, do multiplicar e do dividir. Por causa disso, as duas faces do Mundo, o feminino e o masculino, entram na regra de cálculo de quem dá mais, regido pela lei da concorrência; e há quem se julgue mais alto e mais pesado só por causa do seu género.
Recuso-me a fazer a mim a injúria de tomar nas mãos um tal ábaco moral, uma tal régua discriminadora.
Hoje é Dia da Mulher. E eu, que sou pouco dado a celebrações, venho aqui precisamente por isso, prestar homenagem não ao género mas à espécie, não ao parcial feminino, sim ao total humano. 
Um dia, talvez não seja utopia, ter-se-à chegado a um mundo em que as diferenças convergirão, em que mães, mulheres, filhas, irmãs, receberão o mesmo respeito, mundo em que, de avós a mães e destas a filhas, de geração em geração, se saberá educar homens que aprendam que o diverso não exclui, educar-se-ão mulheres que não se diminuam antes de outros as diminuírem.
Ao terem terminado os seus atormentados dias, minha Mãe, levou consigo a força de alma de ter lutado, isolada, contra o horror da adversidade, logo o da sua incompatibilidade com o mundo. Imolou-se nisso, no fel da incapacidade de ser feliz. Gerou um único filho para quem não há caminho que não seja pedregoso mas que caminha. Na hora de a pensar, livre de tudo quanto foi circunstância e o desespero da dor, é uma "Grande Mulher" que penso, agora que já se foi.
Tantas como ela - e tantas outras mas com alegria irrompendo da esperança - são caminho para a realização do Homem Integral, em que o sexo é apenas distinção acidental na essência do humano, afinal profundamente humano, as duas metades do mesmo Céu.
Não julgo pelo que sofri nem pelo que fiz sofrer: a vida é sempre mais, infinitamente mais, do que a vida que nos foi dado viver.

+

Foto: pintura de Margarida Cepeda.

1.11.14

Como eu subscrevo!

Como eu, que sou nada de coisa alguma, subscrevo! Raivosa e desalmadamente subscrevo!

25.8.14

A mansa revolta da dor


Há um momento na vida em que a tirania mansa esgota a paciência e atiça o fogo da revolta. E a revolta não é mansa e gera o mal que se faz sofrer a partir do mal que se sofreu. E há sempre as vítimas sem razão.
Mas há um momento em que a violência brutal, que nos chega como quotidiana, já está para além da capacidade de a suportar.
Quando era miúdo não conseguia ver filmes que se diziam para a minha idade porque havia um nó na garganta, de dor, que me sufocava e as lágrimas contidas a tal ponto que os olhos pareciam implodir. Era uma forma, ouvia dizer, de, por esse meio, nos educarem a sensibilidade, gerando na nossa afectividade em formação, os bons sentimentos. E havia o cão que, morrendo, deixava o menino sozinho e o rapaz que, porque órfão, nunca seria menino. E a vida era um Natal gélido e faminto vivido do lado de cá da vidraça.
E depois era a mágoa dos amores quando ainda eram apenas ternuras inconsequentes, o medo dos adultos e da sua violência castigadora, os remorsos pelo tanto que se poderia ter feito ou por outra forma. E o pecado. E o dia em que as coisas de que gostávamos e as pessoas que amávamos começavam a morrer.
Hoje já não há muito disso que aleijou a alma. Torná-mo-nos adultos. Atentos ao mundo, há, porém, o que nos chega pelas notícias: a selvajaria das guerras entre povos e o mesmo povo, a cruel violência no seio da própria família. E, na dança macabra dos fins de festa, há a estupidez acéfala dos embriagados pela futilidade, a indiferença que nasce pela banalização do horror. Que não magoa menos.
Confesso que sinto de novo a surgir essa até agora longínqua incapacidade de suportar. 
Quando, porque nascido em Malanje, me chegaram, tinha eu doze anos, os primeiros sinais da violência feroz que se tornou em guerra, vinda da revolta indígena na Baixa de Cassanje, mais a violência feroz da retaliação e a ferocidade angustiante do medo, quando, tudo tornado pavor e insónia, a ingenuidade infantil quebrou estilhaçada em cacos, senti que se me franqueara do mundo o horrível e o feio. E tentei encontrar então uma razão que ao menos me desse a paz de uma explicação.
Hoje, como insecto estonteado ante a luz, dói-me só de ouvir e dói também constatar que evito saber. Não nasce aí o regresso à inocência, sim o enfrentar o espelho acusador da má consciência. 
É que foi este, afinal, o mundo que criámos e deixámos que surgisse.
Há um momento na vida em que a tirania mansa esgota a paciência e atiça o fogo da revolta. E a revolta é connosco mesmo por causa daquilo em que nos tornámos.

+
Fonte da imagem [quadro de Hugo Simberg]: aqui