13.6.06

O ser necrológico

A Inês Serra Lopes, directora do jornal «O Independente» pediu-me que escrevesse um breve texto em estilo de auto-retrato para um coluna do seu jornal. Já me habituei, depois de vários anos a rabiscar para jornais, mas esta de meter uma vida em não sei já quantos mil caractereres deixou-me algo embaraçado. E depois, escrever uma biografia era coisa de que eu não me sinto capaz, por ora ter uma excelente opinião, ora uma péssima opinião da minha difícil pessoa e por vezes uma grande falta de paciência para a aturar. Optei, pois, por deixar desde já um epitáfio tipo necrológico, para evitar equívocos aos vindouros que se lembrem de mim. Aqui fica. Não é tudo o que haveria de dizer. Nem fala nos livros que publiquei, nem nos blogs por onde ando, não fala em muita coisa, por uma razão: não me lembrei! É assim a vida, a importância é apenas uma questão de lembrança. Por exemplo a tragédia de ontem fica esquecida por causa da dor de cabeça de há ums horas atrás. Bom, deixando a conversa, aqui fica o que já amareleceu no jornal e, alegria minha, foi lido pelo homem do café aqui ao pé, prova para mim, que ainda há quem leia outra coisa que não os relatos da bola.
«Pedem-me uma biografia e levam com uma necrologia para que os outros sobrevivos, predadores de cadáver, não inventem a lenda do que não foi. A morte é a interrupção do presente e a condenação inexorável de um indivíduo ao seu passado. Estátua de sal, nega-se-lhe o futuro. O tempo é uma ficção. Como o meu pai era mais velho do que o meu avô, o meu filho mais novo, que tem dez anos, é neto de um homem que nasceu há dois séculos. Por isso, cheguei aos 56 com a noção de já ter vivido mais do que haverá para viver. Filho de solicitador, queria ser juiz. Mas ao ter corrido o risco de uma filha em Direito, fiz tudo para o evitar. Em vão. Eis o que mostra quanto a minha felicidade na advocacia é uma ilusão e prova quantos sucessos aparentes escondem fracassos evidentes. No caso, advogando contra uma miúda, perdi. Em suma, não quero ser o que sou nem que haja mais assim. Além disso, nasci em Angola. Não tenho, porém, a nostalgia de África, nem orgulho pelo que vi acontecer à minha terra. Vivi os pavores nocturnos das metralhadoras e das catanas, a fúria raivosa e primitiva. Dizem-me que os cubanos carregaram com o mármore das campas dos meus avós para a sua ilha. Portugal é um gosto adquirido, mas sou mais patriota do que muitos portugueses que se alugariam à Espanha, a troco de uns churros. Herdei a ânsia criadora do meu pai. Fundou um rádio clube, registou-o na frequência dos 7.945 kilociclos por segundo, na banda dos 41 metros. A rádio em onda média, descobri-a já garoto, a frequência modulada, um luxo de adolescente. Gatinhava a mandarem-me calar, para abrirem o microfone: aprendi aí a linguagem do silêncio. O culto do dever e do orgulho revoltoso, herdei-os pela via materna. Compraz-me ser de alguém que aos oitenta e quatro anos acha, sem vacilar, que «isto só vai é à bomba!». Eu apoio, à minha escala, armazenando petardos. Depois é a ideologia, aquilo que a cabeça fabrica e a sociedade molda. O meu horror ao burguês e ao seu mundo do ter nasceu com o existencialismo. A tragédia do homem como ser defectivo, um amputado em busca ansiosa do que lhe falta, lascando-se no perpétuo movimento que é viver, marca o meu dia e prenuncia o meu fim. Por isso, poucos desejaram, como eu, uma família, e nunca a tive. Produto de zangas sucessivas, a minha prole é uma espécie de cissiparidade, como a que estudávamos nas ciências, no tempo em que a quarta classe era a escola primária, o liceu e a universidade. Por tudo isto, não tenho uma biografia nem uma intimidade que deva ser contada. Tal como o Ruben A., eu sou o outro que era eu».
Desculpem a vaidade. Mas é que depois de ler, fico sempre com a ideia de que isto sim, sou eu, visto a frio, como convém a uma necrologia.