Acabou o Natal e muitas crianças receberam livrinhos de Natal. E por serem crianças receberam livrinhos ditos para crianças, muitos que os amáveis ofertantes nem leram. Mas se lessem viam quantos eram livrinhos de papás, pépés, pipis, pópós e de pupús e não é a Cartilha Maternal de João de Deus de que falo. Livros para oligofrénicos.
Claro que as mesmas crianças receberam também em muitos casos jogos vídeos de uma inaudita violência, a morte ao alcance de um joystick, o sangue quase a jorrar do écran para o sofá.
Ora está na Fundação Gulbenkian uma interessante exposição em que logo no princípio se edita um explosivo texto do Fernando Pessoa sobre um livro do Afonso Lopes Vieira dedicado a crianças, O Naufrágio de Bartolomeu (Dias).
É uma defesa feroz da inteligência em nome das crianças, contra a idiotia dos adultos. Um texto zangado, porque Pessoa quando se irritava dragonizava-se, serpente alada, o mundo por debaixo em labaredas.
A ideia central da crítica é esta: «Nenhum livro para crianças deve ser escrito para crianças. Escrever de cousas simples com simplicidade é quanto se exige daquela espécie de adido à pedagogia que o Sr. Lopes Vieira quer ser».
E isto porque, segundo Pessoa, «escrever como uma criança, é tolerável sendo criança, porque o ser criança o torna tolerável. Mas o que uma criança escreve ou não se publica ou se publica para adultos, psicólogos». Pelo que pergunta e bem: «E que interesse tem para crianças esta baba pedagógica?».
Ora aí está o que deveriam pensar muitos dos que idiotizam dentro de si a ideia de criança para escreverem para o lado idiota que em si julgam ser o de criança. Mais os ofertantes de livros imbecis para crianças tratadas como se fossem leitores de imbecilidades.
A sorte de muitos escritores e ofertantes é não haver hoje um Pessoa que escreva assim: «O Sr. Lopes Vieira é um criminoso. É-o por três razões. Está estragando, com o seu gato-por-lebre de simplicidade, o rudimentar senso estético de crianças, que, mesmo que sejam só duas, são classificáveis de inúmeras, ante o horror do crime. - Está tornando ridículos assuntos que conviria tratar com uma decência que a estupidez, mesmo quando involuntária, nunca tem. Pobres cães nossos amigos tinhosos de Lopes Vieira. Pobre Bartolomeu Dias, tão embobecido de pedagogias! - E, por último, para tudo de nocivo ser, o Sr. Lopes Vieira é até antipedagógico, porque quem escreve merece uma inquisição de professores».
Não sei como reagiu Vieira a Pessoa. «E visto que estes livros para crianças são o seu sono, bem se pode dizer que dorme como uma besta», atirou-lhe o autor da Mensagem. Em São Pedro de Muel o delicado Vieira, pai de País Lilás, Desterro Azul, só pode ter acordado sim, mas estremunhado.