Foi há onze anos que Macau, território chinês sob administração portuguesa, foi devolvido à República Popular da China. Formalmente era uma zona híbrida na lógica do nosso Direito Ultramarino.
Há muitos modos de comemorar o facto ou apenas de o referir. No primeiro caso com alegria, no segundo com nostalgia. Há quem chore ainda perda da bandeira, como há quem chore a perda da carteira. Há quem ria por inconsciência alarve ou sorria por já nem querer saber.
Para o sub-consciente colectivo, amálgama irracional onde se forma a ideia de Pátria e se deforma, através do Estado, a de Nação, com o fim de Macau Portugal reduziu-se ao ponto de partida. Fechou-se o ciclo do Império. Passámos a ser os portugueses enjoados em terra que nunca iriam à Índia, mais os portugueses náufragos desanimados que de lá voltaram.
Claro que a minha Pátria é, como disse Pessoa, a língua portuguesa e o que ela simboliza. Gastaram-se milhões em Macau para que ficasse essa língua de Camões mas ela só resiste por imposição do Estado e por ainda haver ali portugueses na Administração e na vida empresarial. Em todas as outras colónias o português ficou naturalmente, fruto do amor e da mestiçagem, ali, na zona do Sol Nascente, só porque politica e legislativamente convém. Não é uma língua franca mas uma língua fraca. Ai de quem não souber ao menos inglês.
Sonhou-se que Macau seria, enfim, um caso de "descolonização exemplar", livre do opróbio do abandono, mas a sombra suja das negociatas a alto nível e da pilhagem à "árvore das patacas" criou uma macha que levará tempo a diluir-se como a água do Lilau, a que impede o esquecimento. Tempos houve em que ir para a Cidade do Santo Nome de Deus era sacrifício militar ou exílio de amores. Macau foi laboratório onde se gerou a moral rapinante que hoje sobrevooa Portugal.
Há, porém, um Macau de que pouco se fala, dos abnegados que lutaram na guarita do seu posto ou na enxerga do seu recolhimento, os que ali deixaram o espólio do seu amor àquela cultura e àquela gente. O Macau dos desterrados da sorte e dos opiados da má fortuna. Aqueles para quem a Fazenda foi madrasta e para os quais o Palácio foi indiferente. Esse Macau que gerou o macaense, língua de "papaeação", esse Macau que foi o nosso modo de ser colonial. O Macau missionário mesmo sem missas.
Foi há onze anos. Houve quem trouxesse contentores carregados de valores, houve quem se contentasse com o que a memória guarda.
Comemoro hoje Macau. Tenho comigo a "Estátua de Sal" de Maria Ondina Braga que ali viveu, como professora, em reclusão de alma, o coração em dor. «Assomaram-me as lágrimas a primeira vez que vi a "cidade dos barcos"», escreve. A cidade dos barcos é a cidade flutuante, a dos miseráveis, para quem cada pequena embarcação é casa e loja e caixão. A cidade dos que se amarram mais aos filhos ao madeirame flutuante quando toca a tufão e com ele o grito pavoroso de morte. Um pouco adiante dessa tragédia humana que bóia e assim sobrevive, o Casino, as jóias e as antiguidades, o ar condicionado e tudo quanto é luxo tecnológico e suas luzes meretrizes. Há onze anos estavam e ainda estão. É o Macau indiferente, para quem nenhum Império foi Lei nenhuma Senhoria abrigo. Devolvemos à China a galinha dos ovos de ouro. Depois de os ingleses terem devolvido Hong-Kong. Os diplomatas rejubilam com essa mísera vitória. Para a China eterna nada conta. A unificação da Mãe Pátria tem um nome e não está longe. Chama-se Taiwan. Um destes ouvir-se-à falar. Acreditem. É só Dragão acordar, vivificado.