23.10.11

A faísca e o incêndio

Primeiro, foi a mão de obra clandestina que importámos para as grandes obras do cavaquismo e que tinham de estar prontas a tempo dos calendários políticos de inauguração e digo Cavaco sim, porque parece que este que está em Belém não se lembra que é o mesmo que esteve em São Bento. Milhares de homens, desenraizados, sem família, negros, eslavos, não importa de onde, tudo gente para o trabalho braçal, a viverem sem mulher, sem o aconchego de um lar, em trabalhos duríssimos, habitando na degradação da periferia. Gente que acumulou ressentimentos, que construíram o luxo para os outros vivendo na miséria própria, que criou o seu "ghetto", pelos bairros que são hoje barris de pólvora.
Depois, foi o coração generoso de António Guterres a criar o rendimento mínimo garantido, e a viverem dele, e a continuarem a viver dele, além dos que realmente precisam - e tantos milhares são de uma, pobreza afrontosa - , uma camarilha de exploradores, muitos marginais mesmo, a compensarem aquele vencimento certo com uns "biscates" de quando em vez e umas malfeitoriais sempre que podiam. Gente que se habituou a não trabalhar, a poder ficar manhãs até tarde na cama, a gozar de noitadas. E que agora,ao saberem pelas notícias que o que era doce acabou-se vai entrar no bom e no bonito da ressaca e com ela na violência, porque os hábitos de trabalho foram-se com o regabofe que a permissividade do Estado Social foi consentindo. A que se juntaram os que usaram e abusaram do subsídio de desemprego porque nunca encontravam emprego por não quererem encontrar emprego.
Enfim as mulas de carga do sistema, que alombaram com o trabalho de que saiu o que o País produziu, a sacrificarem-se para além das horas em empregos insuportáveis, a saírem estafados de um turno para entrarem noutro para que houvesse em casa mais pão, a aceitarem trocas para receberem mais algum, os que ainda tinham um "extra" ao sábado e ao domingo, gente que cozia roupa para as grandes superfícies, que fazia limpezas fora do horário nos empregos e noitada em segurança, os que davam explicações depois das aulas, os que se agarravam doze e catorze horas a um táxi. Gente que mesmo assim se endividou, gente que vai agora para o olho da rua por causa da gestão danosa de quem esteve no poder, gente que vive no terror de não poder pagar a casa, gente que já não paga a escola dos filhos, gente que, mesmo no come-em-pé se fica por uma sopa.
Não sei onde, não sei quando, bastará uma faísca para que um incêndio consuma o País no Inverno.
Leio na impressa que o coronel Vasco Lourenço pede aos militares se coloquem ao lado do povo no caso de uma alteração da ordem pública. Dir-se-à que é um sinal, ou uma sugestão, ou um aproveitamento.
Não sei que militares temos ainda num País que terá mais oficiais do que soldados. E se os militares não foram entretanto capados pelos civis e hoje não são apenas o Exército da indiferença, travando a batalha de naval nas repartições ociosas.
Sei sim o povo que temos. E sinto que a revolta está na ordem do dia. Não a das manifestações de rua da greve geral que o aparelho da CGTP e os apparatchicks do PCP conseguem ainda enquadrar, a bem da ordem pública e do sistema, mas a revolta sem partido nem ideologia, a revolta que é a mais que a de extremismos políticos, a revolta sem política e contra tudo, a explosão pura do já não aguentar mais.
O melhor sinal, o mais audível, veio da Igreja. Tem-lhe cabido apontar o Mundo como sacrifício e o Céu como promessa e oferecer rezas e novenas como método, cuidando, através das Misericórdias, dos mais urgentemente necessitados. Ora são da Igreja as vozes de onde surge o alerta. Quando o Patriarcado já não acredita em milagres, talvez não haja Virgem de Fátima que nos valha.
Não sei em que dia nem como nem porquê. Mas ou o Governo pára e pensa que está a ir para além do que lhe é permitido ao carregar nos que mais precisam e ao apoucar-nos continuando a abrir excepções em favor dos mesmos de sempre ou isto acaba mal. Muito mal mesmo.