Perguntaram-me que jornal queria e tinham vários no avião. E sem vergonha pedi o ABC, sabendo-o de direita. E logo ali o primeiro facto simbólico, porque alguma esquerda prevaleceu-se vergonhosamente de intimidar a população, tentando convencê-la de que só à esquerda está o bom coração e a inteligência. E muitos que quiseram passar por socialmente preocupados e cultos alinharam por aí, ainda que vivendo no quotidiano a placidez burguesa, e ao filistino egoísmo juntaram a vulgaridade do trivial.
Li-o, sem preconceitos, passando adiante da parte em que se destacavam as touradas, porque as considero uma barbaridade e a indústria do que se chama "desporto" porque é ramo de negócio que não me interessa. Notei que tinha umas páginas dedicada à família, porque ainda existe e, neste desagregado mundo de solidão, renasce a nostalgia de que resista. Curioso.
Mas não vim aqui para gabar o jornal nem o meu gesto em lê-lo, sim por causa do artigo de fundo, escrito por Andrés Ollero, da Real Academia de Ciências Morais e Políticas, sobre a cultura política. Sobre as várias facetas do facto, sem peias. É a «fascistóide demonização do político» que surge no espírito dos eleitores pela generalização do opróbio a todos pelas culpas de muitos deles, daí resultando a impunidade dos prevaricadores fruto da indiferença face a todos quantos. É também a denúncia do cinto protector da presunção de inocência feita equivaler a presunção de irresponsabilidade dos que são apanhados em flagrante malfeitoria.
Lê-se como Literatura por pertencer àquele tempo em que, mesmo nos jornais e para os jornais se sabia escrever com classe e estilo. E surge com ironia o sarcasmo, a descrição do desfile dos novos ricos do poder e seu séquito, a alçarem-se a conezias que não sonhavam, a alusão aos prebostes de berço de ouro a estenderem-se pelo trem de vida anafada a que se habituaram mas sem que lhes saia agora da carteira.
Magnífico texto, do que nele se trata é afinal de uma carta de marear pela linha que demarca a lei da moralidade. Protegidos pelas suas próprias leis, aos políticos tem restado o beneplácito da hipócrita fidalguia de quantos teorizam não poder a Justiça imiscuir-se na gestão da coisa pública, porque se contaminaria, vulgarizando-se ao politizar-se. Aí está o cerne: «os actos cujo juízo não se submetem aos tribunais do Estado caem debaixo da jurisdição do tribunal da opinião pública». A frase, que no artigo se cita, pertence a Jeremy Bentham. Em 1821 ofereceu-se para legislar em favor de Portugal na área do Direito Civil, Penal e Constitucional. Se não tivesse morrido em 1832, valeria a pena que o aceitássemos hoje, para que a Moral voltasse à Lei.