10.6.13

Portugal!


O calendário oferece oportunidades, tendo dias. Há o dia do Pai e o dia da Mãe em que à sociedade dos filhos se dá a oportunidade de, com uma prenda ou um telefonema, mostrarem que houve progenitura e ela tem um espaço de cuidado no seu coração. Mesmo para aqueles que, ao aproximar-se a hora da inutilidade dos que lhes deram a vida, se eriçam já ansiosos pelos despojos da partilha, entre si discutem qual o melhor lar onde se desembaracem do peso de lhes aturar a decadência física e o embaraço mental. E o dia dos namorados, com corações e jantarinhos à luz da vela e oportunidade de carinho na monotonia de quanta vida íntima e uma noite de enlace em semanas de desinteresse. E o dia do trabalhador em que este se permite um dia vazio à burguês, fazendo nada e pensando em coisa nenhuma, pondo de férias a sua raquítica consciência de classe.
Tudo com muitas excepções, claro, entre elas o daqueles que aproveitam estes dias para comemorarem o anti-dia, fazendo tudo para que se note que não querem saber do dia e estão contra o dia, irritados e afirmativamente façanhudos por trazer-lhes o calendário, o calendário juliano ou o calendário gregoriano, um e cada um dos dias e entre os dias dedicados calhar-lhes terem de conviver com a data e os odiados comuns mortais. São os que são sempre o outro e estão sempre do contra.
Além disso, há as efemérides que são um brinde dado pelos mortos aos políticos comemoradores e aos editores. Dias de lembrança engalanada com discursos e escritos e publicações. No dia seguinte volta o senhor morto ao seu coval, devolvido ao facto de ter passado o dia e com ele a ocasião. E a História engole nas suas páginas o acontecido, que entra em nova contagem até datas certas, de decénios e lustres para que se erga então de novo a tenda da celebração.
Vem isto a propósito de ser hoje o Dia que, ao ser o de Portugal, é também o de Camões.
A épica que Camões cantou está hoje ali pelo Restelo a rosnar impossibilidades das Índias e a inutilidade da viagem. É um verso heróico já esquecido cantado a tristonhas gaivotas em terra. De Portugueses plebeus do Quinto Império. De concidadãos que qualquer Intende governa, explorando e apoucando, sem precisar sequer da ameaça do cadafalso ou do pelourinho, apenas valendo-se de se terem tornado a horda vagabunda dos conformados mansos.
Quanto a Portugal são oito séculos a ter dado vergonhosamente nisto. Não sei se no Parlamento ou no Largo da Câmara Municipal ou talvez no Terreiro do Paço, com formatura compulsiva de Sapadores Bombeiros ou de sonolentos magalas, as senhoras autoridades, uma vez mais, cumprirão o caduco protocolo da comemoração. Imagino bem que sim e que haja discurso e fita, penderucalho de condecoração e oportunidade para fazer de conta. O povinho esse quererá lá saber. Amanhã a imprensa dirá do que se disse o que foi "recado" como se de alcoviteiros falasse ou de regateiras.
No seu bojo, naquele recôndito de alma onde nasce no português a saudade e a aventura, há, porém, uma raiva surda que começa a urdir. É ainda um rumor. Tem a ver com a penúria mas vai para além dela. Surge porque se está mal mas isso é apenas a ocasião. Explica-se por estarmos fartos disto tudo mas é a voz anterior à saturação. Não em todos porque nunca é em todos, a maioria acha sempre bem tudo e qualquer coisa e aprende a desenrascar-se em qualquer canto, avinhando-se de alienação, imbecilizados a futebol e a televisão. É naqueles poucos que de quando em vez fizeram as datas que depois morrem, em que a terra a treme, rompe o que está pelo sismo do que talvez pudesse ser.
Há uma raça de portugueses que os portugueses nem sabem. Dormem a esta hora. São sete e pouco da manhã e é dia de Portugal. Se eles quisessem aclamava-se uma nova dinastia, defenestrado o usurpador e seus intendentes.