20.2.08

O riso e o cuidado

No primeiro Governo Provisório após o 25 de Abril ao Ministério da Justiça confluiu toda uma série de cidadãos que reclamavam e exigiam, alegando uns injustiças sofridas por causa do regime deposto, outro na expectativa de que a democracia desse àquela instituição meios de actuação para lhes resolver problemas da mais diversa natureza.
Nessa altura eu tinha 25 anos de esperanças e estava secretário do ministro, o meu saudoso patrono na advocacia, Dr. Francisco Salgado Zenha.
Ora uma tarde surgiu a notícia de que estava na salinha de espera um sujeito que tinha um grave e urgente problema que exigia actuação ministerial imediata.
Já cansado, porque no meio de problemas graves e sérios e alguns dramáticos, havia também algumas bizarrias que levavam o contínuo, criatura transitada da «antiga senhora», o velho Costa - que é feito dele ? e da mulher que era telefonista - a dizer «este é, senhor doutor, o ministério dos loucos!», eis-me a ter de ir atender o impetrante, para explicar que o senhor ministro não estava - por acaso naquele dia tinha ido, lembro-me, a Belém, a uma reunião com o Presidente da República, o general António de Spínola - mas que fizesse o favor de explicar que eu, solícito, tomaria nota.
Assomando ao umbral da porta dei com ele: criatura invulgar, com um ar de angústia, ensimesmado, a viver alguma perseguição, homem mais velho do que eu sou hoje, olheiras vincadas, cabelo crespo, uma roupa que tentava passar por cuidada.
«Senhor secretário, peço-lhe por tudo, ajude-me que tenho a BBC dentro da cabeça, de dia e de noite, e o zumbido não me deixa dormir!».
Tinha já atendido muito tema, dos mais diversos aos menos esperados, mas aquele era novo, entre o patético e o risível.
Voltei para dentro, para conciliábulo com o outro secretário, o velho José António Pombinho, homem de Portel - comunista puro e duro, a facies do Lénine, cuja casa e o «nosso partido» - como ele dizia - se confundiam, a bandeira da foice e do martelo à varanda!
Regressei, momentos após, com a solução milagrosa: «esteja descansado! Escusámos de incomodar o senhor ministro. Ligámos já para os Negócios Estrangeiros e ainda hoje vão desligar a emissão!».
Saíu às arrecuas, grato por um momento de atenção, tanto bastava, era só isso antes de estoirar aquela cabeça à qual os zumbidos já não davam descanso.
Hoje está quase tudo morto, Zenha, Pombinho, Spínola, talvez ele, menos a minha memória saudosa dos tempos em que isto foi possível e eu me preocupava, entre o riso e o cuidado.