21.2.08

A pedra filosofal

As histórias, sim, são como as cerejas e esse, o tempo imediatamente após o 25 de Abril, foi um momento de grandes histórias: invulgaridades inesperadas, cenas de almas torturadas por sofrimentos doridos e vergonhosos, queixumes amargos de deslocados, de quem o desleixo fez perder a respeitabilidade pela sua sorte, todo um cortejo humano de rancores, súplicas, de ânsias.
Um dia chegou ao Ministério um requerimento de um guarda prisional, que em papel selado se queixava do mísero casebre que o Estado lhe fornecia, como se guarda sendo, de reclusos, cão de guarda fosse, na sua casota, acorrentado ao dever carcerário, sob um periclitante tecto, tudo velho, desamparado, desconsiderado.
Escrito em cuidada caligrafia, pois que nesses tempos ensinava-se na escola a escrever cursivamente e sem pontapés na gramática, o requerimento lá expunha, como podia, um desejo a melhor habitação.
Um entre tantos, lá foi, por nós secretários de ministro encaminhado, para a Direcção Geral dos Serviços Prisionais, então e hoje ali ao Torel, «para informar«.
Informação por vir, eis que chega um segundo requerimento. Citava o primeiro, lamentava a ausência de resposta, dizia confiar ainda numa decisão e para que o Ministro da Justiça se não esquecesse, o requerente no canto inferior direito do almaço azul encimado pela esfera armilar - como isto parece jurássico! - recortou, a lâmina, um rendilhado no meio do qual se inseria uma tímida fitinha vermelha com a legenda «para Vossa Excelência não se esquecer de mim».
Entre a risota catártica por causa da fitinha, o lamentar rotineiro por mais aquele caso de mediania serventuária, lá se mandou a segunda exposição de novo «à Direcção Geral dos Serviços Prisionais, insistindo pela resposta ao requerido».
O tempo passou e um longo silêncio ecoava tanto da parte do requerente como da entidade oficiada. O caso parecia ter entrado na montanha dos problemas por resolver, cada vez mais graves.
Um dia, entra o Costa, o dedicado contínuo, que constava havia sido polícia e que, quando chamado pela campainha, tinha ainda a pose de mãos atrás das costas, como se em estilo de formatura militar aguardasse de nós um «firme! sentido!» a todo o instante. Creio que já andávamos pelo ano da brasa, 1975, em que, pior do que em Rio Maior, onde a moca era argumento político, a norte urdia a rede bombista. Entra o Costa, ajoujado com pesado embrulho, estranho, suspeito, quase parecendo que fazia tic-tac.
Susto entre os secretários! Que seria? Quem queria fazer mal ao nosso Salgado Zenha, que conseguira do Vaticano o divórcio para os católicos, mas de alguns «saneados» a ira pelo que lhes sucedera.
Posto em cima da mesa, o pacote que esgotara do Costa os bofes, encimava-o, ao papel pardo que lhe servia de embrulho, um requerimento, mais um, em papel selado, como sempre, do mesmo guarda prisional. Rezava mais ou menos isto: «Senhor Ministro da Justiça, Excelência, eu sou aquele guarda prisional que sem sucesso tem escrito várias vezes a esse Ministério na esperança que o 25 de Abril, que tanta alegria e esperança trouxe aos nossos corações de servidores do Estado, nos desse a Justiça que merecemos e no meu caso uma habitação decente para mim e para a minha família, porque a casa que me atribuiram está a cair. Ora ontem, senhor ministro, precisamente este pedregulho, que anexo junto, caíu mesmo em cima da mesa da casa de jantar e saiba Vossa Excelência que foi por sorte (...)».
Não sei o que é feito do requerimento e da pedra. Talvez aguardem ainda, «à consideração superior, com a informação de que o processo disciplinar instaurado ante a remoção não autorizada de parte integrante de edifício pertencente ao domínio público do Estado, ainda que com a finalidade de instruir petição legal, aguarda emissão de avaliação da Direcção Geral do Património no que refere ao valor do dano assim causado pelo arguido, tendo em vista a prolação de decisão final, na qual possa ser conhecida então, como questão prévia, a matéria da prescrição do procedimento, suscitada na defesa, conforme acórdão transitado para uniformização de jurisprudência (...)».