Unamuno dizia que somos um povo de suicidas. Acrescento que somos um País com a idolatria pelos mortos. Cultivamos a desmesurada lembrança por aquilo que em vida esquecemos. Isto não se aplica a Hermano Saraiva, irmão do falecido historiador e crítico da Literatura, António José Saraiva, tio do director de um semanário, José António Saraiva. Porque dele pode dizer-se que o País na sua generalidade guarda uma memória e pode dizer-se uma lembrança amável e grata.
Claro que existem os que - sobreviventes da geração de sessenta e da crise académica de Coimbra - não esquecerão o seu dito «a ordem em Coimbra será mantida!», proclamado, em estilo iracundo, quando se deram os graves incidentes naquela Universidade que levaram à intervenção da força policial e a cenas de violência nas ruas.
E claro que existem os que estiveram no campo da política "oficial" em desacordo com ele, os próceres do regime anterior, que o julgavam um heterodoxo, e os opositores, que o julgavam um homem da Situação. Ainda hoje, o corpo por descer à Terra, ecoavam os epítetos de "fascista" a resumirem uma vida política que do fascismo se não reclamou, porque essa palavra é um anátema que fuzila de imediato aquela contra quem seja atirado, qual pedra certeira a desfigurar o rosto.
Um dia a História trará ao de cima o nome daqueles que fascistas, sim, no sentido técnico do termo, após o 25 de Abril entraram directamente para partidos de esquerda, onde foram recebidos sem caução mas com unção e onde, convertidos, abjuraram tudo aquilo a que antes tinham declarado servil obediência.
Não vim aqui escrever sobre José Hermano Saraiva por causa disso. Sim para lembrar uma história que ele contou nos fascículos auto-biográficos que publicou e que li na totalidade. Lembro o episódio porque revelador de muitas coisas numa só história. Ei-la.
Comemorava-se então um dos aniversários da Revolução Nacional do 28 de Maio com cerimónia luzida na Assembleia Nacional. Previa-se que usasse na palavra o Dr. Melo e Castro, líder da União Nacional, o "partido" único que o salazarismo consentia. Mas, eis quando, primeiro num murmúrio, depois com certeza, veio ao de cima a notícia de que um jovem, algo dissidente do regime, poderia ser chamado a, em jeito de contraponto, perorar também no hemiciclo de São Bento: o Dr. Hermano Saraiva.
O júbilo encheu então o peito daquele jovem político em ânsia de ascensão, confessa-o ele naquela crónica deste momento da sua vida. Ademais, porque no acto poderia estar e esteve o próprio Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar.
Enfim, decorreu o cerimonial e o orador teria atingido, segundo a encomiástica descrição que faz da sua intervenção, o clímax da retórica. A ponto de, confidencia, ter surpreendido em certo momento, uma furtiva lágrima, no frio rosto do Chefe, usualmente distante e inexpressivo.
Tudo estaria bem não fora o facto de o seu discurso ter de tal modo caído no goto de Salazar que este, pela noite, ligou ao então director da Televisão, o Dr. Ramiro Valadão, perguntando-lhe qual o motivo pelo qual não se passara no pequeno écran a fala do Dr. Saraiva.
Eis o ponto, a crise, a agonia. Incapaz de confessar que, a ter de escolher o que filmar - num tempo em que nada era em vídeo mas tudo em película de cinema, donde oneroso, - se decidira no Lumiar que se filmaria sim o líder da União Nacional, até pelo seu posto graúdo no regime, e não aquela figura esperançosa mas ainda a fazer o seu cursus honorum na escadaria do poder, Valadão, engasgado, garantiu que, sim, que tudo tinha sido filmado, incluindo o Dr. Saraiva, naturalmente, estivesse pois Sua Excelência tranquilo, que até se preparava um programa especial para tal notável peça oratória.
E - acreditem porque é o próprio que o relata - sob apertado juramento, aproveitando a noite, uma equipa de TV, tomou imagens, no vazio parlamento, o Dr. Hermano Saraiva a discursar, tentando, puxando pela sua extraordinária memória, repetir os trejeitos, os gestos, os tiques, as expressões, com que animara a sua eloquência, não fosse o Chefe, manhoso e bom observador, dar por ela quando o programa "especial" viesse para o ar.
Qual conjura, ritual de sociedade secreta, cumpriu-se para que os factos pudessem tornar-se verdade: a RTP filmara tudo quanto o seu director garantia.
Eis, no dia de hoje, em que nos deixou, essa interessante porque complexa personagem, o que me apeteceu contar. É uma história sintomática, risonha, que talvez traga o justo equilíbrio entre o que foi, o que viveu e o que nos deixou.
Nele estiveram as contradições de um povo, mais a dedicação ao seu País e sua História.
Claro que, País de carrancudos, os académicos da Historiografia detestam-no, porque cometeu o sumo pecado, segundo eles, de a "vulgarizar"! Nisso estão, conservadores, irmanados com os seus opostos revolucionários. Aqueles porque querem uma História só de factos sem muitas ideias complicativas, estes porque a querem só de ideologias simplificadoras.
Com Hermano Saraiva o Povo, mesmo quando iletrado, aprendeu uma História de sentimentos, o amor a Portugal.
Com Hermano Saraiva o Povo, mesmo quando iletrado, aprendeu uma História de sentimentos, o amor a Portugal.