Para comemorar o 25 de Abril de
2006 escrevi isto. O de
2007 isto. O de
2008 isto. Hoje releio tudo e pergunto-me sobre o que escrever. Esta manhã a ideia ocorreu, vinda de ontem.
Como disse num dos posts que agora refiro, sendo dos que tem prova documental de que a polícia política do anterior regime não gostava de mim por eu não gostar dela, nunca quis ir à Torre do Tombo conferir o meu processo. Acabei por vê-lo este ano. Uma investigadora tinha-o pedido para consulta. Avisou-me e, amiga, invectivou-me a que fosse consultá-lo. Lá fui, aos Arquivos Nacionais, hesitante, uma tarde destas.
Confesso que ia inquieto. É sempre embaraçoso vermos o nosso retrato tirado pelos outros. Podemos não nos reconhecer. Além disso, os polícias nem sempre são bons fotógrafos, os «bufos» adoram apanhar-nos em roupa interior, num à la minute grotesco.
Abri a capa dos autos. Fantástica surpresa e lição do que a vida nos reserva. O meu processo é comum ao Eduardo Ferro Rodrigues, ali juntos por um momento, o futuro a encarregar-se de nos separar.
Abri-o. Não tem muita coisa. Em causa a actividade associativa, ali documentada com uns comunicados reprografados a stencil - a malta nova saberá o que é o stencil, que se emendava com verniz de unhas? - e umas quantas folhas volantes, da classe do «lê e passa».
No fim, lá estava, a evidência das vezes em que a DGS teve de se pronunciar sobre a minha conformidade política, uma porque concorri a um manhoso lugar de delegado interino do Procurador da República em qualquer ignorada comarca, a começar pela das Flores, outra - já nem me lembrava - porque a minha amiga Rosário tentou, ingénua, que eu encontrasse o almejado pão nosso num lugar no Ministério então chamado das Corporações, no qual, atentos eles e informados, nem da entrevista de selecção passei e, finalmente, uma terceira quando se tratou de ser colocado no Centro de Informática do Ministério da Justiça, por causa do que andara a escrever, desde 1969, sobre o binómio cibernética/Direito e outras insólitas bizarrias na altura basto esquisitas.
Falta dizer, porém, o que me leva a escrever este post, o que me doeu, ainda dói e faço por esquecer.
No meio daquela pouca papelada lá estava um auto de declarações. Ele fora ouvido. Fazia parte do Movimento Associativo, como eu. Se me perguntassem se ele tinha corrido também, Alameda abaixo, rumo à Rua de Malpique, das vezes em que a Polícia de Choque entrou em Direito, à vergastada e com cães, juraria que sim. Estou certo, isso sim, de que sempre foi um indómito radical, à esquerda de todos nós, o sorriso trocista ante as nossas hesitações conservadores, na sua boca reaccionárias, claro, pequeno-burgueses, por certo. Reservado, de poucas falas, esteve sempre perto de nós, próximo.
Só que desta feita, saído do cuidado silêncio que lhe conhecíamos, abrira-se, falador. Contara tudo, denunciara, à desbunda. Mentira, emporcalhando inocentes. Bamboleando-se ante os interrogadores, para se tornar apetecível, fizera-se de santo. No meio daquilo, lá vinha o Barreiros em reuniões onde nem me lembro de ter estado, contado ao pormenor, e a menção a todos os outros, tantos outros que o tínhamos por amigo, confidente, camarada, tudo agora ali, com nomes, com acusações, delações.
Aturdido, tentei saber se tinha sofrido violências, maus tratos que justificassem ter rachado. Garantem que não, os que eram seus íntimos. Pior do que um fraco só um merdas. E ele fora um merdas fraco, dos que o são mais do que para safar a pele, muito mais do que por um instinto de sobrevivência, mas pelo interesse em agradar, antecâmara do subir na vida.
Com o 25 de Abril encontrei-o muitas vezes. Revolucionário de língua, era figura gorda num partido da extrema esquerda, a pose e o paleio ajustados. Revi-o mais tarde em Macau, gordo, rico, advogado de sucesso, mas sempre à esquerda, claro, trocista, conspirador, acusador das heterodoxias alheias, indicador!
Fiz sessenta anos uns tempos depois de ter lido estes fólios, uma idade cruel, em que se olha para trás.
Hesito se lhe hei-de dizer na cara o que sei, procurando-o para o efeito. Apenas para que ajustemos contas com a História, a nossa história.
Denunciante, chibo, seguirá uma vida de colaboracionismo. Deve estar hoje a comemorar o 25 de Abril. Enquanto eu, estou a escrever sobre isto carregado de tristeza, envergonhado por ele ser parte do que é a minha geração.