20.10.11

A trapeira do Job

Isto que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente. 
Mas houve um tempo em que as pessoas se lembravam ainda da época da infância, da primeira caneta de tinta permanente, da primeira bicicleta, da idade adulta, das vezes em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do primeiro televisor, do primeiro rádio e de quando tinham ido ao estrangeiro.
Houve um tempo em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o sobejante da refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe restante, se fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o colarinho e os punhos do avesso, assim como os casacos e se tingia a roupa usada, tempos em que se punham meias solas com protectores. Tempos em que, ao mudar-se de sala, se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho de ver a Deus e à sua Joana".
E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na Inglaterra dos Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945 passava-se fome na Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a selvajaria humana pode arrasar.
Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.
Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital. Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no condomínio fechado e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status como a língua nos cães para a sua raça. 
Foram anos em que o campo se tornou num imenso ressort de turismo de habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave. Houve quem pensasse até que um dia os serviços seriam o único emprego futuro ou com futuro.
O País que produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade, vindos dos fins de semana com a mala do carro atulhada do que não lhes custara a cavar e, às vezes, nem obrigado. 
O País que produzia o que se podia transaccionar esse ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios e que os víamos chegar, mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou negócio.
Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente.
Os intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da maquinaria industrial pelos megabytes de RAM da computação universal. Um dia os computadores tudo fariam, o ser humano tornava-se um acidente no barro de um oleiro velho e tresloucado, que caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho ungénito e mais uma trinitária pomba.
Às tantas os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a servir à mesa porque estávamos a importar brasileiros, não havia portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos.
A chegada das lojas dos trezentos já era alarme de que se estava a viver de pexibeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a medir.
Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista, trocado pelo novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais claro, e sempre pela reforma agrária e vai um uísque de malte, sempre ao lado do povo e já leu o New Yorker?
A agiotagem financeira essa ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a conta-ordenado, veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum banco quer que lhe devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital rende. 
Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois, que somos nós todos, os bancos instigavam à compra, ao leasing, ao renting ao seja como for desde que tenha e já, ao cartão, ao descoberto autorizado.
Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele balcão bancário buscar dinheiro, vender-mo-nos ao dinheiro, enforcar-mo-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra.
Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o mando, querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda governamental, e nos intervalos, imbelicidades e telefofocadas que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula. E contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem, pensando por nós.
Estamos nisto.
Este fim de semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.
Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura em Bizâncio discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós.

15.10.11

Bon chic, bon genre

Confesso que o homem me irrita. E confesso que ainda mais me irrita a corte de quantos o deificam, nele vêem o Catão das virtudes, o Moralista por excelência, o Polícia dos costumes. E acreditam que o dizer mal de tudo decorre de uma pureza de alma e de uma coerência de carácter.
Não é só ele. Há pelo País uma pleiade façanhuda de gente mal disposta e mal encarada que, por um lado, têm sempre opinião sobre todas as coisas e, segundo, se julgam o relicário das virtudes. E com lugar cativo na imprensa, doutorais e papais.
Um dia passo-me e conto a história pregressa do Vasco Pulido Valente Correia Guedes. Do que fez para chegar a assistente de Económicas. E do mais e quanto tudo isso foi de vergonhoso e como foi a história de uma ambição feita método.
Dir-se-à que isso que eu contar foram estouvadices do seu passado juvenil, como o deveria mencionar a testemunha abonatória que então indicou à PIDE/DGS, nos autos ali abertos, a seu pedido, e chamados de revisão, o Dr. António Martinha, dos Serviços de Censura, colega na mesma do pide António Barbieri Cardoso.
Não! É que houve quem, nesses anos de chumbo, comeu o pão que o Diabo amassou e foi expulsa da Universidade e corrida de empregos públicos e até na privada se lhe fecharam as portas. 
Gente que aguentou firme, não delatou, não jurou fidelidade à Constituição de 1933, não traiu. Gente da classe média que ele hoje despreza, com a sua arrogância patrícia de bon chic bon genre, como se lê na sua crónica de hoje no jornal Público.
A farsa do diletantismo é o circo das democracias caducas. Nela há duas regras de vida: o epicurismo burguês e o desprezo pela criadagem. Que eles, os snobs malcriados, acham somos todos nós.
Detesto falar de pessoas. No caso falo de uma encenação.

O Estado e a Revolução

Encostada à parede, a classe média é o terreno fértil onde pode florescer a semente do revanchismo autoritário. Foi assim que surgiu nos anos vinte o totalitarismo ateu alemão, o fascismo concordatário italiano e a rural ditadura católica salazarista.
Há nela, a pequena burguesia, o desprezo pela plutocracia argentária e o arrogância face ao operariado bolchevista.
Não é de excluir que a revolta surja daí, partindo-se o País pelo seu elo mais fraco. 
Além disso, obediente à troika o Governo eximiu-se de carregar no capital, por pensar que a crise financeira se resolve com a acumulação do capital. Por muito que tenha errado, o marxismo já tinha demonstrado que era o inverso. Ontem o primeiro-ministro mostrou quem vai ser sangrado para que esse capital se encontre.
Ademais Portugal é uma Nação governada por funcionários endividados e administrada por políticos que são funcionários dos credores.
Tudo junto, basta uma faísca não importa em que Grécia, ou uma primeira rixa de rua, a revolta torna-se em insurreição.

26.9.11

A cavalo dado...

Estará aqui a solução. Ou pelo menos um esforço para o encontrar. Vinda dos States, como o Plano Marshall. Uma mistura de globalização, monetarismo, aforro e tudo em doses cavalares. Temos visto cavalos com ideias bem piores...


24.9.11

Os dilectos "filhos do povo"

Se, neste momento em que a  Eurolândia se desmorona, Durão Barroso, um radical de que os americanos se serviram para, através do MRPP, combaterem o marxismo em Portugal, for o amigo útil ao tio Sam em Bruxelas, deverá pensar olhando para o "tigre de papel" que é o capitalismo a arder, tal como o Presidente Mao, seu líder espiritual:  «devemos apoiar tudo que o inimigo combate, e combater tudo o que o inimigo apoia». 
E ler o livro de Henry Kissinger, a amoralidade feita política de ping-pong...
O seu pensamento aos dezassete anos torna-se acção aos cinquenta e cinco.

20.9.11

A rumba

Gastou-se, esbanjou-se, "à tripa forra". O Estado e os particulares. A Administração central, a local e a regional. Fizeram-se estádios de futebol, poli-desportivos, rotundas, centros culturais. Viveu-se do cartão de crédito, do compre já e pague depois, das férias no Verão que pagará no Natal. 
Os políticos sabiam e queriam. As entidades de supervisão, de fiscalização, de investigação, sabiam e deixavam. Dava para todos. Os do costume alombavam com a carga da poupança, do pagamento a tempo e horas, com o que ainda se produzia, bestas de carga de um país de tantos burgueses anafados e muitos operários aburguesados.
De vez em quando um fazia de bombo da festa nos tribunais ou nos jornais, para que a festa continuasse.
A vaca leiteira da CEE alimentou o sistema, a grande teta da política e dos partidos do governo, os empresários "da formação profissional", os "agricultores do monte alentejano mais o jeep", as micro-empresas de coisíssima nenhuma.
Portugal tornou-se "gourmet", epicurista, inventou-se um "Allgarve" alarve. Uma geração de "yupees" tecnocráticos tomou conta da economia virtual, do mundo novo em rede, das finanças e da bolsa. O velho mundo do real e do tangível sujava demasiado as mãos. Tornou-se tudo capa de revista em papel "couché".
Depois foi a ressaca da bebedeira.
Primeiro as famílias endividadas até não poderem mais; agora é o Estado falido.
O País que se decapitou na capacidade de produção por se ter corrompido à Eurolândia é o mesmo País que sustenta hordas de chulos a viverem do erário público, alegando tudo menos vontade de trabalhar.
Só faltava a imoralidade. Eis a hora. Rendido à agiotagem, pela administração danosa, o Estado mostra agora que  aldrabão é, porque escondeu calotes, ocultou a realidade da sua falência, mesmo na hora de negociar com os onzeneiros tenta fingir que não está tão endividado.  O último primeiro-ministro mentiu até rebentar, o actual tenta que acreditemos que só agora os que o rodeiam sabiam a verdade.
É o tempo da borrasca e da rixa, o "chic" a dar em tasca. A maior parte dos que cá andavam, jogam-se, porém, para fora da taberna. São todos inocentes, porque não sabiam. São todos inocentes porque foi o partido do outro. São todos inocentes porque era no tempo da anterior direcção do seu partido.
Alberto João Jardim, esse, faz de Rei Momo, o seu papel preferido. Pergunta porque não lhe perdoam já que perdoaram às colónias. O nosso complexo ante a sua insularidade é o mesmo complexo ante as colónias, o receio de não querermos parecer colonialistas. Dele, como das autoridades das ex-colónias ouvimos tudo, no mínimo enxovalhos e insultos. Com a diferença: nas colónias andámos aos tiros contra eles, na Madeira, "cubanos" que somos de mentalidade, sustentámos a rumba política  e a cachaça eleitoral.

6.9.11

O Império da Lei

São países em que os governos estão sujeitos não só ao controlo parlamentar mas a fiscalização de legalidade pura. Veja-se o que se passa na Alemanha e a ansiedade com que é esperada a decisão do Tribunal Constitucional quanto aos compromissos que o Governo Merkel assume no quadro do seu envolvimento financeiro na crise da União Europeia.
Citando:
«One week after German Chancellor Angela Merkel’s Cabinet ratified additional measures to combat the euro-area debt crisis, the nation’s top court will rule on whether her government was right to take part in the rescues at all.The Federal Constitutional Court in Karlsruhe will issue a ruling on last year’s bail-out packages tomorrow. While anxiously anticipated by lawmakers and scholars, investors believe the judges are likely to rubber-stamp German participation in the bailouts, said Kai Schaffelhuber, a capital markets lawyer at Allen & Overy LLP in Frankfurt.» Toda a história aqui.

Situações que dificilmente se imaginariam aqui onde o Governo goza de um estado de complacência tradicional face ao controlo jurisdicional.

23.8.11

E esta hein?

Um destes dias ouvi na rádio uma entrevista em que o entrevistado contava como é que Salazar, curioso que estava ante a personalidade de Agostinho da Silva, na altura exilado no Brasil, arranjou um modo clandestino, à revelia da PIDE (sic), combinado com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, para que o exilado professor visitasse o País. 
Segundo o entrevistado a coisa só não resultou porque, ao chegar ao aeroporto, Agostinho da Silva foi preso pela PIDE, que não saberia dos secretos manejos a alto nível. E, ante esse inesperado facto, Franco Nogueira, em traje cerimonioso de soirée, pois estava num banquete oficial na Ajuda, lá teve de ir ao aeroporto tentar remediar a situação.
Perguntou o entrevistador, da Antena 2: «e o professor foi recebido por Salazar?». Esclareceu o entrevistado: «não, porque depois do que sucedeu com a PIDE já não seria possível...foi recebido sim pelo ministro Franco Nogueira...».
Que pensar disto tudo?
Que é mentira, uma inventona, dirão! 
Claro que o entrevistado cita a fonte: foi o próprio Franco Nogueira quem lho contou.
E claro que o entrevistado tem escrito livros sobre Salazar, que têm sido recebidos com muita bonomia pela própria esquerda política, et pour cause
E claro que o entrevistado sabe do que fala, porque sendo da terra da Dona Maria, a lendária governanta do Presidente do Conselho de Ministros, ia a São Bento amiúde até para explicar ao homem de Santa Comba como ia a agricultura.
E, esquecia-me, o entrevistado chama-se Fernando Dacosta, jornalista.
Ante isto, como diria o Fernando Pessa: «e esta hein?»

16.8.11

A hora da indecência

«É roupa usada mas está em bom estado», dizia-se do lado de cá, pensando que, por ser um lar de freiras que recolhiam idosos estariam imbuídas do sentimento da caridade e porque há pobreza em Portugal e pouco quem pense nela. Cruel engano. Ríspida, a resposta cortou cerce a ilusão: «Se for um saco ou dois, está bem, mais não!». E para que não houvesse dúvida de que a antipatia da voz correspondia à antipatia da atitude, atalhou «e vejam lá se aparecem a horas decentes», querendo dizer com a noção de decência antes das oito da noite!
Ah! que ira cristã, a mesma do próprio Cristo quando empunhou o azorrague contra os vendilhões no Templo, ele que era o arauto da religião dos mansos!
Vergonha e indecência! Se alguém conhecer quem precise e queira, porque é roupa usada mas em bom estado e vamos a horas decentes e entregamos no local. E entregaremos a quem disser representar o Diabo porque destas representantes de Deus estará o Inferno cheio.


13.7.11

O colossal desvio

A política é arte da argumentação. Visa o governo da Nação, através do Estado mas mediante a adesão do Povo. Mesmo quando se impõe o mal a uns há outros que aceitam essa imposição que outros rejeitam sofrer. Mesmo quando se sacrifica uma geração presente parte-se do pressuposto do aplauso da geração futura.
Até os ditadores não se livram deste contrato social implícito. Para eles é a Pátria ou o próprio Deus a fonte da aquiescência.
Por se moverem na arte de argumentação e no domínio da retórica os políticos têm de ter cuidado com as palavras. Manuela Ferreira Leite passou um mau bocado quando sugeriu que a democracia se interrompesse para bem do País. E ela teve de se interromper porque o acordo com a troika foi firmado fora da anuência parlamentar e apenas referendado a posteriori indirectamente em eleições. Já a adesão à então CEE aconteceu em tempos como política de facto, puramente governamental, ante um País que imaginava que tal só traria o El Dorado dos subsídios, mesmo à conta do suicídio da mais séria das autonomias, a alimentar. 
Voltando às palavras. Sabe-se como um ministro perdeu o seu lugar por causa de uma anedota sobre alentejanos, como outro teve o mesmo destino por via da linguagem gestual de cunho taurino.
Vem isto a propósito de Passos Coelho - que pensa que para se ser ouvido multiplicadamenete se deve falar superlativamente - ter lançado para os ares que os do Governo deram conta de um desvio «colossal» nas contas públicas face àquilo que o anterior Governo apregoava, enquanto que Miguel Frasquilho - mais técnico e por isso mais prudente - teve de vir dizer que o desvio «colossal» era, afinal... um «grande» desvio.
A oposição começou já o batuque em torno da palavra. Já se clama por explicações, idas ao Parlamento, enfim espectáculo político.
E o País que está esfaimado de substantivos vai assistir a mais uma ridícula e essa sim colossal batalha de adjectivos.O primeiro-ministro tem de aprender a ter tento na língua. Já dei comigo a pensar nisso por mais de uma vez. Não é que a minha observação conte. Sou ninguém e não quero ser alguém. É apenas porque, quer no espaço nacional quer na cena internacional, há quem leve as coisas a sério e esteja sobretudo à espera de uma palavra que revele ainda mais o nosso estado comatoso.

1.7.11

Os 50% de verdade

Eu não sei em que medida é que o Governo cuida da sua própria imagem e da forma como comunica com os cidadãos, meio pelo qual se ganha por vezes uma péssima imagem.
Mas esta madrugada vejo esta notícia: afinal o subsídio de Natal não será cortado em metade. Apenas será cobrado 50% do valor que excede o salário mínimo nacional. Vem aqui
Confesso que tudo isto é bizarro! Um Governo que sabe que o País começa a viver em alarme permanente. Que deixa que desde líderes de oposição até ao pobre Zé da esquina se angustiem, revoltem, desesperem ao verem o dinheiro com que já contavam - quantas vezes nem para Natal sequer! - a ir-se em metade e só agor, estando a procissão do protesto já no adro é que se lembra de vir esclarecer!
Continuem assim que não vão longe!
É que das últimas uma: ou era uma falsa notícia e havia que desmenti-la logo no ovo ou então era uma verdade de que o Governo se arrepende e então é melhor terem melhor cabeça para não terem a breve prazo que terem pés para fugir à ira popular.

25.6.11

Governar com os jornais

O primeiro-ministro tem de ter muito cuidado com os efeitos mediáticos que cria ou que deixa que se criem. Esta do viajar em turística é um delas.
Num instante um efeito tornou-se noutro; o primeiro, vantajoso e encorajador, o segundo prejudicial e desmoralizador.
Soube-se que Passos Coelho viajaria para Bruxelas em turística. Muitos saudaram como um notável exemplo de parcimónia nos gastos e de contenção de despesa, de moralização, afinal, das Finanças do Estado.
Como os contribuintes estão desconfiados, surgiu logo no instante a insidiosa dúvida: mas viajará sempre doravante em turística?
Ante isto, Passos Coelho, que navegava nas águas reconfortantes das boas maneiras, teve de entrar logo à defesa, fazendo explicar que era só na Europa. Naturalmente, porque ninguém supõe que um primeiro-ministro se canse fazendo viagens de longo curso na incómoda cadeira e no confinado espaço do moderno transporte de massas em que o avião se converteu.
Claro que, melhor informado de qual era, na verdade, a real economia com este gesto simbólico de poupança, Passos Coelho teve de fazer clarificar que, afinal, do que se tratava era de deixar livre um lugar na executiva, para que a TAP o vendesse e não fosse ocupado pela sua pessoa. Ou N lugares consoante a comitiva... Ou seja, já não era poupar o pagar, porque não pagava, era apenas dar à companhia transportadora a oportunidade de gerir a diferença de preço entre uma classe e outra. Isto é, o gesto tinha mais som do que tom.
Mas o difícil estaria para vir. Fonte ligada ao anterior executivo - que não revelou o nome (claro..) - explicaria que, afinal, os do governo não pagavam quando viajavam na TAP. Escândalo!
Ante isso, Passos Coelho teve de encostar às tábuas do mutismo. O seu gabinete já não prestou declarações. A TAP já não prestou declarações. Pior, um seu assessor veio dizer que não foi o gabinete do PM quem fizera aquela fuga de informação, a inculcar a ideia "a contrario" de que o gabinete faz fugas de informação, o que é confessar um incómodo que ainda vai custar caro!
Enfim!
Desejei a Passos Coelho e ao seu Governo a melhor sorte.
Louvo aqueles que aceitaram ser Governo nesta tremenda situação. Vão enfrentar a ira popular, sabem que se falharem cai tudo. É um Governo de última oportunidade.
É bom que não estraguem o importante com improvisos.
Se Pedro Passsos Coelho quer agir sobre este tópico há um modo muito simples. Neste caso havia, porque já se estragou metade do que poderia ter sido.
Primeiro, informa-se quanto a quem paga à TAP; no caso de haver quem viaje à borla, legisla e politicamente acaba com o abuso. Em nome da transparência das contas públicas. Para que a arruinada TAP receba por todo o serviço que presta, para que o Estado pague toda a despesa que cria.
No mesmo instante, estabelece critérios gerais quanto a quem tem direito a viajar em que classe. Porque é ridículo o primeiro-ministro viajar em turística e na executiva irem directores-gerais e gente das empresas públicas. No mesmo avião em que vão familiares de pessoal da TAP à borla.
E, enfim, quando falar ao País, o País percebe que não é um gesto é toda uma atitude que mudou e de que o primeiro-ministro é o primeiro exemplo: mais verdade nas finanças, mais restrição na despesa, mais moralidade no Estado.
Na política não basta ter boas intenções é preciso saber pô-las em prática. Quando usamos os jornais para Governar, é bom que se saiba que é um mundo de papel em que se arde muito depressa.

19.6.11

Ontem num colóquio ouvi da boca de um jornalista: se funcionasse apenas a lógica do mercado muitos jornais fechavam.
Claro que houve tempos em que, imperando ideias socializantes, havia imprensa estatizada como o "Diário de Notícias". A situação era a mesma. Nesses conturbados tempos um membro do Governo com funções para [ou contra a - , como diziam os seus detractores] Comunicação Social entrou no gabinete do do seu ministro, um dia, esbaforido, perlado de subor e de tartamudices verbais fruto da aflição porque «os tipógrafos, em greve, recusam-se a imprimir o jornal». «Óptimo», disse o tigrino ministro, cuja frieza de ideias cumulava um coração piedoso para com as vítimas dos seus interesses, «quanto menos sair menos prejuízo dá».
Aplicado a muito do País, funcionasse o mercado, amanhã fecharia a Carris e tudo quanto é transportes, incluindo a CP. Talvez se fechasse mesmo o Estado para poupar a Nação.
Voltando aos jornais a pergunta que se justifica é: se em termos de mercado dão prejuízo mas não fecham, quem sustenta o vício? E sobretudo porquê ou para quê? Ninguém perguntou. Acho que as pessoas sabem mais do que parece. Os silêncios são eloquentes.
Há, por isso, um jornal, que vai aceitando de embarda anúncios das meninas que prestam serviços íntimos. Não é porque o dinheiro delas, vindo da tristeza de vender alegria, estimule, é porque, naquele que já foi um jornal de referência, a sua companhia já não choca.

17.6.11

Oxalá

Ser-se Governo num momento em que se falham parece que afunda tudo deve ser um sentimento de ansiedade para os próprios e de angústia para o País.
De um Governo pode não se gostar deste ou daquele ministro, pode não se gostar de ninguém, pode até não se gostar da ideia de haver um Governo.
Acontece, porém, que neste momento gravíssimo da vida nacional, tudo parece de repente ter assumido um valor relativo. Há um ambiente geral de contenção. Ajudou o Governo não abranger na sua generalidade estrelas do tablado mediático. Até porque, num momento destes, as ditas estrelas, prudentes, saem de cena, pois não querem queimar-se.
O Governo que se anuncia é um Governo claramente para ser queimado vivo. Vão ter de conviver com a execução de medidas que vão gerar a revolta popular. Os verdadeiros desprotegidos vão ficar pior. Os falsos carecidos vão perder o apoio à inércia e a decidirem-se, enfim, a sair da vadiagem subsidiada não encontrarão trabalho. A classe média vai ser esmagada.
Pior: o Governo que se anuncia é um Governo para ser teleguiado pela "troika" e pelo que resta de uma Europa que nos cercou de regulamentos e por causa da qual rebentámos com a agricultura, que nos garantia auto-suficiência, porque a indústria, essa, estoirou por si.
Confesso um sentimento íntimo de inquietação. Na política não, porém, estados de alma. É caso para dizer, vindo do fundo do coração: oxalá!

16.6.11

CEJ: zero de conduite!

Haver futuros magistrados apanhados a copiar num exame na escola onde estão a ser formados é parte do agarotamento em que caíu a sociedade portuguesa, fruto da infantilização da juventude, a quem política concede direito de voto a as leis o acesso a cargos de autoridade. A escola que os forma não relevar esse desvalor grave de conduta como causa de inidoneidade absoluta para a função para que os prepara, aí está a gravidade maior. Dar dez de nota em vez de zero isso é apenas o sintoma e o sinal. A vilania moral compensa.
Talvez o que tudo isto indicie é a necessidade da vassourada de uma sindicância ao modo como funcionam as instituições. Assim haja força para o fazer com isenção e coragem para cortar a direito. Aos olhos do revoltado povo não são apenas os que copiaram que estão em causa, sim todo o corpo a que pertencem. Para a opinião pública infelizmente "andamos todos ao mesmo".
O problema é quando os problemas dão azo a discursos inconsequentes, por mais exaltados que sejam, a concitar simpatia de quem ouve. E isso tem abundado.
Saturados da miséria moral, saturados também dos demagogos que são pescadores de águas turvas no meio do pântano. Mais dia menos dia vemo-los pelas alcatifas do poder e percebemos quanto a crítica era, afinal, apenas uma forma de trepar pela escadaria domando.
Um candidato a magistrado que copia viola de modo manhoso a igualdade dos candidatos nesse exame para safar a sua pele. Parece um tudo nada. Um dia quando tiver pela frente um cidadão cujo destino lhe pertença decidir, sem que o perceba julgará julgando-se. A fatiota judiciária será apenas o traje de um baile de máscaras.

10.6.11

A tristonha cerimónia

Aos portugueses endividados, falidos, diminuídos por deverem, a um passo da ousadia de não pagarem, pedem hoje, 10 de Junho, as senhoras autoridades que gostem cerimoniosamente de Portugal.
Claro que Portugal, não é um país fácil de se gostar e por isso muitos portugueses não gostam: para uns, porque é pequeno e já foi grande, para outros, porque tem a mania de que é o maior. Nos portugueses, aquilo com que se embira é com o complexo de inferioridade, e com a mania das grandezas. Há em nós essa estranha dualidade psicológica. Surge em auras repentinas e dura o tempo de uma discussão de café. Nos intervalos agónicos da crise, vivemos em latente depressão.
A nossa maneira portuguesa de ser, não é só a de sermos instáveis, é, sobretudo, de sermos inconstantes. 
E depois, os portugueses desapontam-se e surpreendem-se de Portugal. De Portugal gosta-se do clima, mas os portugueses especializam-se em carpir por causa dele. De Portugal gosta-se do desenrascanço dos seus naturais, mas os portugueses acham que nada vale a pena. De Portugal gosta-se dos portugueses, mas os portugueses não gostam de portugueses.
Além disso, há a nossa estranha maneira de ver. Um português típico é o que vê reflexamente, olha-se como que a um espelho, toma a sombra pelo corpo, ri-se do outro, como se não fosse ele. Os portugueses nunca estão contentes com o que está, estão sempre descontentes com o que são, porque se acham melhores do que o que parecem. O português olha para si como se visse na rua. Nele, a maledicência é sempre uma forma de auto-crítica. Envergonhado de ser ele próprio, o português do povo médio foi ainda intimidado pelo português que se julga único a ter vergonha do seu patriotismo. Nesse aspecto, as ideologias são iguais, o internacionalismo proletário tão parecido com a internacional do capital: à esquerda, o português tem medo de dizer Pátria, para não parecer fascista, à direita tem medo de dizer Nação, para não parecer retrógrado. É nesta colonização mental que temos vivido e é neste baixio que nos atolámos.
O português comum, ou emigrou ou é como se tivesse emigrado. Para ele, Portugal é uma chatice, inevitável só por estar no lugar onde nascemos.
Ainda por cima há no português de hoje a fobia da morte da raça lusitana. Amputado das colónias, encurralado no rectângulo continental, o português residual teme estar em vias de extinção. Por isso o português se torna ibérico, não vá tornar-se espanhol. Por isso, se quiz europeu com medo de ficar africano.
Não fosse a selecção nacional portuguesa e ninguém gritaria por Portugal.
Sucede que a Europa se reduziu à Alemanha e Portugal à sua dívida pública. Envergonhados devedores os portugueses começam agora a ter medo de perder Portugal.
Nos 10 de Junho a Pátria resumia-se à liturgia medíocre da parada compulsiva de militares obrigatórios e a deprimentes condecorações, tantas a esmo. Uns dias depois os Santos Populares alimentavam o povinho a sardinha e a vinhaça.
Hoje não há bebedeira que nos salve da tristeza nem condecoração que dê respeito. O Estado esgotou a Nação.
A 10 de Junho celebramos o Camões que não voltou na nau da Índia, o ouro do Brasil enterrado nos Conventos de Mafra ostentatórios da nossa grandiloquência falida. No podium da celebração está uma regime em dúvida, em suas casas um País em dívida.

9.6.11

Boa sorte portugueses

Vamos partir de um postulado: o de que, pelas razões de emergência nacional que vivemos, os nossos políticos, desde os que formam Governo aos que estão a preparar a oposição ao mesmo, interiorizaram alguns valores e princípios. E que a vida em Portugal ainda tem esperança de mudança.
Primeiro, que os cargos públicos não são benefícios pessoais nem formas de se alcançarem vantagens pessoais e que quem vai para a política não vai desta para melhor.
Segundo, que a litigação partidária deve passar para um segundo plano ante a discussão política, a discussão política não deve sobrepor-se aos interesses nacionais, porque o poder não é um jogo de azar.
Terceiro, que a lógica de coesão e de solidariedade deve prevalecer sobre a afirmação de identidades ideológicas, a existirem, e de particularidades pessoais, que essas existem.
Vamos partir de um postulado: o de que aqueles a quem se confiou pelo voto o poder e aqueles a quem o voto confiou o dever de se comportarem como oposição percebem, ante a expressiva abstenção, em que medida há um País que se deixa governar sem querer saber do Governo, tantos por desprezarem governantes.
É uma técnica mental, como o botão de "reset" nos computadores. Vamos admitir que qualquer coisa mudou nos que estão no "pau de sebo" do mando e nos que se agarram a eles para os arrearem dali.
Porquê? Nem eu sei. Talvez por medo, o de que estamos no limiar do desastre, talvez por esperança, a de nos desejar, a nós os governados, "boa sorte". Bem precisamos dela.

25.4.11

Portugueses, de pé!

Escrevo isto com a tristeza de hoje ser o dia 25 de Abril. Nesse dia, em 1974, por causa da PIDE eu estava em Armas Pesadas de Infantaria no Quartel em Mafra.
Um regime que não garante nem emprego nem futuro à esmagadora maioria dos seus jovens, arrastando-os para a infantil dependência dos pais e para o perpétuo desemprego, um regime em que os jovens machos se imbecilizam com jogos virtuais violentíssimos e os adultos se idiotizam com o futebol na tv em doses cavalares e em que a coscuvilhice feita jornalismo rosa alimenta a ociosidade e a falta de sonho da feminilidade solitária.
Um regime que endividou o Estado até ao osso depois de o ter deixado pilhar por meia dúzia de novos ricos e agora faz todos pagarmos a conta do festim.
Um regime que tem as famílias falidas, porque enforcadas em hipotecas imobiliárias, e estraçalhadas por causa do crédito ao consumo e desejosos de mais gasto e mais compras.
Um regime de publicanos e filisteus, todos na ânsia do ganho, da renda e do lucro.
Um regime em que dois partidos que não se diferenciam nem distinguem pelas ideias e são iguais na ganância e na sede de poder rendoso, são, afinal, o partido único, a União Nacional dos tempos de hoje.
Um regime em que uma faixa significativa dos seus nacionais nos venderia à Espanha em troca de um prato de lentilhas.
Um regime que saqueia a Nação com impostos e em que os contribuintes aldrabam o Estado nos impostos, achando-o ladrão.
Um regime em que já não se sabe quantos anónimos bichos-careta foram Secretários de Estado ou até ministros e menos ainda quem eram ou de onde vinham, mas em que se percebe depois ao que vinham.
Um regime que capou os militares, achincalha os tribunais e domesticou a Igreja.
Um regime com estes e tantos outros males está minado pela pior lepra que é ele ser a gafa que tudo contamina.
Um regime destes e não este ou aquele Governo ou este ou aquele partido ou aqueloutra coligação tem de se deposto. A bem ou a mal.
A tarefa patriótica para os poucos a quem restem forças e esperança não é o que fazer nas próximas eleições.
Um regime destes clama, exige e merece uma Revolução. Chegou ao ponto em que ele é a semente da sua destruição. Não uma revolta cívica ou o lento corroer das manifestações de rua. Uma Revolução.
Não foi para isto que se fez o 25 de Abril. Foi por isto assim que surgiu o 28 de Maio.`
Portugueses, de pé.

24.4.11

Quando o lobo acordar

Parecerá arrogância, mas a cidadania é feita do direito e do dever de cada cidadão exprimir o que pensa. Porque cada homem é um voto.
Lamento concluir mas nenhum dos dois partidos que têm sido Governo me oferece confiança para poder acreditar que têm soluções para Portugal. Lamento concluir que as poucas pessoas com valor que restam neste País não arriscam o que seja para se mobilizarem para a causa pública.
Aqueles partidos não têm dirigentes credíveis, estas pessoas não querem fazer perigar os seus interesses ou o seu bom-nome. A calúnia passou a ser arma política, a vantagem pessoal o seu móbil.
A linha da frente da vida política em Portugal está entregue pois aos que só têm a ganhar porque nunca tiveram muito a perder. É o mundo do arrivismo. A retaguarda que os sustenta é a apatia dos que se vão safando nos interstícios da economia paralela e do mundo dos expedientes, mais o empreendorismo manhoso dos que se encheram com a especulação privada e com a depredação do Estado.
De quando em vez surge um que parece um bem intencionado, altruísta e desapegado. Em breve se mostra um Nobre de nome.
Há, claro, os ingénuos úteis, os que ainda acreditam e militam ou até simplesmente votam. E os indecisos e a abstenção, o maior partido português.
Que Portugal tenha uma solução, terá. No imediato vai ter um Governo comandado pelos credores, assim como até aqui era governado por funcionários de Bruxelas. Passámos a ser uma Nação entregue a intendentes. Na hora do voto escolheremos empregados julgando-os senhores e sonhando no momento do voto que somos donos do nosso destino.
A urna passou a ser eleitoral e funerária. Através dela a democracia vai agonizando, sangrada por aqueles partidos que a aprisionaram.
Passadas as férias da Páscoa e a tolerância de ponto Portugal entrará na via sacra. Lentamente a dor das privações vai fazer-se sentir. O baile tresloucado e ébrio do crédito sem garantias e do calote consentido vai dar azo ao fim de festa e à ressaca. A classe média, endividada até ao tutano, será a primeira a ajoelhar. É dela que surgem historicamente os sentimentos de revanchismo, sementes das comoções políticas que desembocam em tragédia. O proletariado aburguesado pelo sindicalismo interesseiro não vencerá as contradições das suas ambições medíocres, de que um plasma para o futebol compra a alienação.
O egoísmo europeu mostrou já a sua face. À Europa lírica, dos passarinhos multiculturais, sucede um cerrar de fronteiras e a defesa do espaço vital das potências do Eixo franco-alemão. Não é essa agremiação de interesses que nos salvará. A Sociedade das Nações imaginou no seu tempo que não haveria mais guerras. Com o Tratado de Versailles a Europa imaginou que conteria a Alemanha pacífica e longe do mar. Um dia o lobo acordou esfomeado. As pegadas do ódio multiplicaram-se  na terra fértil do anseio de ordem e de orgulho nacional.

21.4.11

O gesto estranho

Estendeu-me a mão decidida mas com um olhar indiferente, como se ainda prosseguisse, arrastando-a, a conversa com o que me antecedia. À pergunta sobre se poderia entrar com aquele saco, nem resposta deu, alçando-mo, mecânica, da mão, para colocá-lo, preste, num cacifo, entregando-me, em troca, uma ficha de depósito.
Havia, porém, algo de incerto no seu modo de agir, como se uma timidez ocultasse aquele rápido desembaraço. Era a seu modo eficiente, ainda que pouco comunicativa. Mas estranha.
A verdade surgiu com a crueldade da conclusão no mesmo instante. Hoje, tarde de chuvisco e de tolerância de ponto, tarde de compras naquele supermercado, ela era peça anónima do serviço de recepção. A sua tarefa tinha a importância de tentar defender a honra dos honestos face a equívocos e evitar que os desonestos se pudessem aproveitar da confusão. Além disso era aquele o seu ganha-pão, do qual sairia, Deus sabe, que sustento para nem se imagina o quê.
Havia em tudo isso uma única particularidade que tudo explicava incluindo a estranheza dos gestos: era cega.
Depois de mim, os seus olhos inseguros e mortos varriam o horizonte próximo buscando quem quer que viesse a seguir a nós. Pressentia, como num arrepio, a presença do outro, a sombra humana, o passo seguinte da sua repetitiva função. Tantas horas assim durante cada dia, todos os dias.
São estes os pequenos heróis quotidianos, os que envergonham as nossas menoridades de alma com a sua força moral, a capacidade de resistirem silenciosamente à adversidade, o tornarem passinho miúdo da rotina os passos de gigante da sua coragem.

1.4.11

Uma Nação que se salve destes Governos

A pontos de ser classificado como «lixo» pelas agências internacionais, no limiar da banca-rota, o problema não é o Governo já nem ter coragem de ser ele a pedir socorro por esmola às instâncias do capitalismo internacional de que foi serventuário, apodando-se então sem vergonha de "socialista". O problema é que a alternativa política que se oferece é tão má como a que existe.
Não precisamos de um Governo de salvação nacional, sim de uma Nação que se salve destes Governos.
O pessoal que se perfila para o poder é cada vez mais de mais baixo nível. Com raras excepções são aqueles a quem nenhuma empresa intelligente daria emprego, aqueles que só recebem emprego das empresas amigas dos Governos por causa de terem estado num qualquer Governo.
A decadência moral do País não é a do falido nem a do pedinte, sim a do perdulário e do inepto.
A Nobreza terratenente gerou no seu tempo os dandys que se venderam à burguesia rompante para se manterem, o brasão já gasto, entre espanholas e calotes. Hoje são plebeus donos de nada que se hipotecaram ao cartão de crédito e ao descoberto autorizado.


23.3.11

Os cegos de Brügel

O Governo está morto. Só existe já o primeiro-ministro e nem ele existe, subsiste. Começou com o teleponto e com o teleponto termina. O resto é pior que pode acontecer a um Governo: ninguém acredita neles, nem os que deles se servem.
Manipulando estatísticas como um prestidigitador com lenços, para os responsáveis pelas finanças e pela economia os números de ontem não são os de hoje e ninguém sabe quais vão ser os de amanhã.
Caia ou não caia com o PEC, o Governo parece já a cena dos cegos do Brügel. O Presidente da República faz de cego quando não pode fazer de surdo. Para ele Sócrates não deve ser morto politicamente sim frito em fogo brando. Tudo isto e tudo o mais é jogo politiqueiro. Votar sim ou não, adiar a morte ou prolongar o estertor, esperar pelo Conselho Europeu ou pela ganância da agiotagem externa, tanto conta.
O País assiste para já espavorido, amanhã revoltado, a um espectáculo deprimente..
As oposições possíveis não conseguem reunir a confiança de que se precisa. Ninguém sabe quem é Passos Coelho, nem quanto vale, nem o que sabe, quase se ignora o que pensa. Para além da boa figura e da boa fatiota pouco mais há.
Lamento esta descrença. Ela vale pouco por ser minha, vale tudo por ser a de centenas de milhares de portugueses, os que não votaram, os que se arrependem do voto, os que ainda votam no que há com medo do que venha.
O sistema partidário português não oferece soluções. A democracia, prisioneira que está deste sistema, deixou de ser solução. A alternativa é ou uma ditadura ou uma revolução.
Combati o regime anterior, sofri na pele os efeitos disso. Não foi para esta miséria que se fez o 25 de Abril.

19.3.11

O cascagrossismo

Esta gente bem compra fatos caros e de fino corte, muda de óculos para parecerem letrados e por isso inteligentes. Não adianta.
Os partidos bem se esforçam por ter carne fresca, ainda que desconhecida, gente bonita para que os que trocam pelo corpo se lhes rendam na hora da urna.
O sistema político, que está nas últimas, bem tenta fingir que tem consigo os melhores, os mais aptos, aqueles em quem se pode confiar.
Mas não há nada a fazer quando lhes foge o pé para a chinela. Mostram então quanto tudo é postiço, fingido, quando o cascagrossismo ainda é o que as suas mentes produz, mesmo quando as suas poses disfarçam.
Passos Coelho saiu-se hoje com uma digna de tasca: «Portugal está com as calças na mão!». Vem numa entrevista ao Correio da Manhã e pode ler-se aqui
É a boçalidade às escâncaras, a alarvice verbal feita política. A canalha, achará graça ao chiste de baixo coturno. Os que exigiriam mais calam-se. São os que já não contam por não quererem saber.
Lugares onde se esperava haver contenção verbal tornaram-se locais de mau porte. Portugal afunda-se na vulgaridade, no plebeísmo; já não está de calças na mão, sim de rabo ao léu e sem cuecas...

12.3.11

Viva quem vive!

Ter vivido o tempo suficiente para ter assistido ao transformar-se em revolta a inquietação, mesmo quando ainda ingénua, da juventude. E ei-los na rua.
Ter vivido o tempo suficiente para ter purgado o pecado original de termos educado, mesmo quando iludidos, uma geração de apatia, consumismo, indiferença. Porque fomos nós.
Ter vivido o tempo suficiente para ter sabido conviver com a ideia de que, inconformistas na juventude, os enganámos, adaptando-nos, mesmo quando pesarosos, ao insuportável, gerando democraticamente os tiranetes que nos dominam. E somos o pesadelo do péssimo exemplo.
Ter vivido o tempo suficiente para termos visto a geração que tornámos rasca e à rasca a desenrascar-se nas ruas da manifestação. E nós com eles.
Ter vivido o tempo suficiente para serem eles, inflamados ainda só de protesto, o motor do sonho, a alavanca da mudança, a revolução que vem no coração do homem antes de se propagar ao âmago da sociedade onde vive.
A todos quantos são jovens, a todos quantos viveram o tempo suficiente para não terem envelhecido com tantos anos, viva!
Portugal ressurge do chão.  Viva, pois! Viva!

21.2.11

Acredite o Palácio de Palmela

A degradação de um sistema nasce com os actos e com as palavras. Quando se desempenham cargos de responsabilidade cada palavra conta, porque é um exemplo, porque é uma sinal de autoridade.
Uma «boca» num café proferida por um anónimo de nada vale. O quer que eu diga aqui conta pouco. Porque aquele fala quantas vezes com muitíssimo menos informação do que desejo de auditório, porque eu falo por mim apenas e neste momento nada represento, por melhor informado que estivesse e não estou.
Ouvir o Procurador-Geral da República dizer que o segredo de justiça é «uma fraude» e que «não há nenhum poder para controlar isso», dói. Porque supunha-se que a defesa do segredo de justiça coubesse ao Ministério Público de que ele é o vértice. Porque se acreditava que, a conviver com fraudes, ele tivesse a coragem de se demitir do cargo e do poder criminal geral e voltar para o seu lugar de juiz onde exercia o poder civil específico.
Mas ouvi-lo dizer que em Portugal «os políticos continuam a tentar resolver as questões políticas através de processos judiciais» espanta. Não porque seja ou não mentira, mas pelo que significa de suspeita indeterminada quanto aos juízes que o tolerem e de dúvida quanto a saber de que processos falará ele afinal, sem os nomear.
O poder em Portugal esfrangalhou-se. Aos responsáveis exigia-se rigor, concisão, autoridade. Hoje quantos falam com a generalização de conversa de tasca, com a loquacidade de coldrilheiros, com a incapacidade de amanuenses sujeitos a ocultas obediências. A lepra da verborreia demagógica está a tornar a Justiça numa gafaria. Um a um caem-lhe os membros.
Estamos num País em declínio onde ninguém manda, ninguém quer obedecer.
Ouvir o Procurador-Geral falar assim como o Dr. Alberto João Jardim, com o mesmo tom e sem o mesmo dom, custa e enraivece! A mim e a muitos dos que têm de suportar este discurso de vacuidades e de demissão que a nada conduz, e que é, afinal, a conversa do populismo.
Acredite o Palácio de Palmela que a rendição dos poderosos abre as portas à insurreição dos fracos, assim um caudilho os comande. O primeiro sinal de anemia do mando é sentir-se nele a tentação da vulgaridade.
Não tenho esperança que algo mude mas ao menos que não piore. Para mal já basta assim.

3.2.11

Miguel Urbano e o Santa Maria

Porque decorriam cinquenta anos sobre o assalto ao paquete "Santa Maria" e isso significou um momento histórico decisivo na História do anterior Regime, marcando o início do seu descrédito na cena internacional - como o mostrou o auxílio americano e brasileiro às negociações que culminaram com a devolução do navio à Armada brasileira e por esta a Portugal, com o concomitante apoucamento da posição de Salazar em todo o caso - organizei, com a colaboração da Livraria Barata, um evento para o qual convidei o Camilo Mortágua que integrarara o DRIL, o comando luso-espanhol que levou a cabo a proeza e em cujo livro de memórias faz referência ao seu envolvimento no feito.
A casa que nos recebeu aproveitou e procedeu à apresentação de um livro que traduzi, o relato do acontecimento escrito por Jorge Sotomaior, um galego que integrou a direcção do DRIL e cuja narrativa conflituava directamente com a de Henrique Galvão, também líder do DRIL.
Pretendi também convidar o Miguel Urbano Rodrigues que esteve a bordo do navio enquanto jornalista, assistindo à parte terminal das negociações. Declinou o convite.
Pensei que mantivesse essa nossa conversa sob reserva, embora não fosse confidencial. Trouxe-a, porém, para o conhecimento público, talvez porque eu anunciei no evento, a seu pedido, a sua recusa. Pode ler-se aqui.
Gostava que ficasse claro que tive pena que o Miguel Urbano recusasse. Não me convenceu o facto de me referir que tanto a versão do Galvão, como a do Sotomaior como a do Camilo não correspondiam à verdade, porque se a verdade era a que ele sabia então mais uma razão para estar no evento pois tínhamos direito a essa "verdade". Disse-lho então mas ele insistiu em recusar presença.
Numa só coisa ficou mágoa: quando ele me disse e repete que o livro do Sotomaior não deveria ter escrito e muito menos traduzido. Discordo com todas as forças da minha alma de homem livre. Todos os livros, todas as versões dos acontecimentos têm o seu lugar. A liberdade quando nasce é para todos, mesmo para os que não dizem a nossa "verdade", mesmo para os que dizem o que se vem a saber não ser "verdade". Só pela pluralidade e pelo contraditório se alcançam as certezas possíveis.
Lamento que o Miguel Urbano pense isto quanto ao livro ter sido escrito e traduzido. Ele lamentará seguramente ter estado envolvido na aventura do "Santa Maria". O problemas das culpas que temos a expiar não se esconjura queimando na fogueira os demónios que nos atormentam.
Respeito-o. Ele deve respeitar o esforço a que meti ombros para dar a conhecer este outro lado dos acontecimentos. Ainda bem que o Sotomaior escreveu o livro, oxalá todos os lados da questão possam dar azo a muitos livros. Que surja um livro escrito pelo lado daqueles que cumpriram o seu dever não alinhando com o comando assaltante, do ângulo do piloto que foi morto a tiro, na perspectiva dos vários passageiros, que nem todos viram o facto como um cruzeiro de luxo com uma aventura revolucionária não prevista no programa, na óptica do problema jurídico-internacional que embaraçou o Estado Português, livros que mostrem as infiltrações da Seguridad espanhola e por via dela da Pide no DRIL, livros sobre a ligação cubana, livros sobre as conexões da CIA, livros que mostrem tudo o que houver para mostrar.
O livro de memórias do Miguel Urbano é fundamental, todos os livros são fundamentais. Viva a «Santa Liberdade», assim foi crismado o navio, consumada a "Operação Dulcineia"!

27.1.11

Heróis aos pontapés

O problema de Portugal é não se poder fazer a Revolução pelo voto. E, no entanto, a Revolução está na ordem do dia, esconsa nas mansardas de muitos que aparentam estar conformes. O conservadorismo parece instalado no coração e nos intestinos dos portugueses. É o reaccionarismo astucioso dos que enchem a barriga, defendendo o prédio e a banca, o conformismo apático dos que estão de barriga vazia com medo de passarem mais fome. Todos esses pertencem à Legião do «deixa lá».
As eleições podiam ser momentos de mudança radical, mas os interesses que se transformam em boletins eleitorais são sempre os mesmos, mesmo com outras caras, cada vez mais com caras mais anónimas. Vota-se ordeiramente em todo o País, mesmo quando se vota pouco.
Vocifera-se, isso sim, raivosamente nos intervalos da ida à urna, mas é na urna funerária do voto que a revolta se enterra com flores murchas no primeiro dia das novas legislaturas.
Tornamo-nos acomodatícios, plebicistando o que detestamos porque aprendemos a viver à conta disso. Na Ditadura vendia-se a liberdade na democracia aluga-se a consciência.
O problema de Portugal é que a Revolução é possível. Com Machado dos Santos sozinho na Rotunda, Gomes da Costa a caminho de Lisboa, Salgueiro da Maia cercando o Quartel do Carmo. Uma faísca e o povo explode.
O problema de Portugal é que um dia perdemos a vergonha de sermos tratados como europeus de segunda e exigimos ser tratados como portugueses de primeira.
A vida nacional é gerida por funcionários em Bruxelas e por empregados do Poder em Lisboa: os de lá decidem o quê os daqui o como. A estes juntam-se os credores, seus patrões finais.
Depois é a tristeza, o deânimo e o desespero que nos torna os cantores do fado vadio e os ouvintes da sua melopeia deprimente. Os portugueses sofrem pelos amores funestos e pela alegria breve.
Claro que ainda há o futebol que é a nossa forma de sermos heróis aos pontapés. A todas as horas em todos os dias, boquiabertos de imbecilidade, até ao dia em que alguém invadirá o relvado.

25.1.11

Fomos nós!

Que idade têm aqueles de quem a minha geração fez cobaias das experiências pedagógicas dos propedêuticos e dos cívicos, das passagens administrativas e do entrar-se nas faculdades sem positivas e com facilitismos, os dos 12º anos dados de borla e todo o cortejo de "borlas" e de "copianços"? Aqueles que são veterinários porque o lobby médico impôs o numerus clausus e com ele os cubanos e eslavos que fazem hoje a medicina que é negada aos nossos nacionais? Os que trabalham nos "call centres" e nas caixas de supermercados com mestrados inúteis, a "geração canguru" que vive na dependência e no cravanço, infantilizada mas por lei maior e capaz de votar e validar políticos e políticas? Os que cursaram universidades a estudarem por fotocópias e apontamentos sem nunca terem lido um livro?
Por onde anda a «geração rasca», insolente e mal comportada, que abaixava as calças e mostrava o rabo nas manifestações públicas, como se a coragem hoje fosse não dar a cara mas as nádegas? Por onde os frutos do consumismo, que atulhámos com tudo o que nos extorquiram, chantageando os nossos complexos de culpa? Onde os do «que se lixe a politik que eu quero o joystick?». Onde? Onde?
São esses que estão no mando, no poder, na decisão. Os poucos que escaparam à maré-negra que nós gerámos, vivem subjugados como pássaros a tiritar a morte por sufocação ante o crude da insolência, do oportunismo e  do aproveitamento.
Arrogantes que fomos com os nossos pais, é isto que deixamos como fruto. Escapar a isto é ser herói ou louco. O País afunda-se e nós fingimos que não fomos nós.

17.1.11

O País do Rei Momo

Não sei se algum Presidente de República foi respeitado. De Costa Gomes dizia-se que era «o rolha» por ter sido crachat de ouro da PIDE e depois ícone sagrado da esquerda no PREC. De Spínola que era o «caco» por causa do monóculo prussiano a que o pingalim de Cavalaria dava ares, os tiques e os toques que o infiltrado Gunter Walraff gozou até mais não, quando ele caiu nas malhas do inconsequente ELP/MDLP. De Eanes gozou-se o ser de Alcains e de cenho fechado, mais a desajeitada tentativa de monopolizar a ética no PRD, que faliu sem glória, com Soares a tentar demonstrar que ele, para além de um hirto robotizado, nem um livro ler saberia. De Soares gozou-se tudo, desde os pecados da "descolonização exemplar" até àquilo que Rui Mateus verteu em livro com resultado zero e que meteriam qualquer um na cadeia, o acusador ou o acusado, só que o País virou a cara para o lado.
Uma coisa é certa. Talvez nunca o gozo público tenha sido letal. O sistema não caiu, o Estado aguentou-se, e se não houve um regime que tenha sucedido ao antigo regime a culpa não foi dos apoucantes nem dos apoucados.
Dói nos intervalos de meter nojo o que se está a passar em matéria de presidenciais. Tenta ganhar o que mais baldes de trampa lança para cima do candidato do lado.
A Chefia do Estado era das poucas coisas que sobreviviam. Todos os poderes estavam já na lama do desprestígio. A receita é fácil: ataca-se um, a matula generaliza a todos: padres, professores, juízes, procuradores, militares e guarda-nocturnos, nada resiste, tudo esbraceja no vilipêndio. A receita é fácil. Joga-se um à canalha, a sangrar um pecado, e a matilha estraçalha, em arruaça, a classe toda, na base do «isto anda tudo ao mesmo», «o que eles querem e precisam sei eu!».
Lentamente, as duas sementes do fascismo florescem no Carnaval da democracia: o pessimismo e a ânsia de ruptura. Ninguém quer isto, todos querem qualquer coisa que seja.
O primeiro pirómano que surgir, incendeia a cidade. No dia seguinte, dissipado o fumo, começam os enforcamentos contra os suspeitos de sobrevivência. Ao Rei Momo em Belém sucedem os gatos pingados de Quarta-Feira de Cinzas.

20.12.10

Macau: foi há onze anos!

Foi há onze anos que Macau, território chinês sob administração portuguesa, foi devolvido à República Popular da China. Formalmente era uma zona híbrida na lógica do nosso Direito Ultramarino.
Há muitos modos de comemorar o facto ou apenas de o referir. No primeiro caso com alegria, no segundo com nostalgia. Há quem chore ainda perda da bandeira, como há quem chore a perda da carteira. Há quem ria por inconsciência alarve ou sorria por já nem querer saber.
Para o sub-consciente colectivo, amálgama irracional onde se forma a ideia de Pátria e se deforma, através do Estado, a de Nação, com o fim de Macau Portugal reduziu-se ao ponto de partida. Fechou-se o ciclo do Império. Passámos a ser os portugueses enjoados em terra que nunca iriam à Índia, mais os portugueses náufragos desanimados que de lá voltaram.
Claro que a minha Pátria é, como disse Pessoa, a língua portuguesa e o que ela simboliza. Gastaram-se milhões em Macau para que ficasse essa língua de Camões mas ela só resiste por imposição do Estado e por ainda haver ali portugueses na Administração e na vida empresarial. Em todas as outras colónias o português ficou naturalmente, fruto do amor e da mestiçagem, ali, na zona do Sol Nascente, só porque politica e legislativamente convém. Não é uma língua franca mas uma língua fraca. Ai de quem não souber ao menos inglês.
Sonhou-se que Macau seria, enfim, um caso de "descolonização exemplar", livre do opróbio do abandono, mas a sombra suja das negociatas a alto nível e da pilhagem à "árvore das patacas" criou uma macha que levará tempo a diluir-se como a água do Lilau, a que impede o esquecimento. Tempos houve em que ir para a Cidade do Santo Nome de Deus era sacrifício militar ou exílio de amores. Macau foi laboratório onde se gerou a moral rapinante que hoje sobrevooa Portugal.
Há, porém, um Macau de que pouco se fala, dos abnegados que lutaram na guarita do seu posto ou na enxerga do seu recolhimento, os que ali deixaram o espólio do seu amor àquela cultura e àquela gente. O Macau dos desterrados da sorte e dos opiados da má fortuna. Aqueles para quem a Fazenda foi madrasta e para os quais o Palácio foi indiferente. Esse Macau que gerou o macaense, língua de "papaeação", esse Macau que foi o nosso modo de ser colonial. O Macau missionário mesmo sem missas.
Foi há onze anos. Houve quem trouxesse contentores carregados de valores, houve quem se contentasse com o que a memória guarda.
Comemoro hoje Macau. Tenho comigo a "Estátua de Sal" de Maria Ondina Braga que ali viveu, como professora, em reclusão de alma, o coração em dor. «Assomaram-me as lágrimas a primeira vez que vi a "cidade dos barcos"», escreve. A cidade dos barcos é a cidade flutuante, a dos miseráveis, para quem cada pequena embarcação é casa e loja e caixão. A cidade dos que se amarram mais aos filhos ao madeirame flutuante quando toca a tufão e com ele o grito pavoroso de morte. Um pouco adiante dessa tragédia humana que bóia e assim sobrevive, o Casino, as jóias e as antiguidades, o ar condicionado e tudo quanto é luxo tecnológico e suas luzes meretrizes. Há onze anos estavam e ainda estão. É o Macau indiferente, para quem nenhum Império foi Lei nenhuma Senhoria abrigo. Devolvemos à China a galinha dos ovos de ouro. Depois de os ingleses terem devolvido Hong-Kong. Os diplomatas rejubilam com essa mísera vitória. Para a China eterna nada conta. A unificação da Mãe Pátria tem um nome e não está longe. Chama-se Taiwan. Um destes ouvir-se-à falar. Acreditem. É só Dragão acordar, vivificado.

19.12.10

Quando a Alemanha se fartar...

A Alemanha começa a fartar-se dos caloteiros que financia e daqueles que o Deutsche Bank julgava serem bons devedores. Berlim Recriou a velha Europa e está a ver-se afundar com ela. Por causa das dívidas que o Tratado de Versalhes a obrigou a pagar inventou o Adolph Hitler. Um destes dias os Jünkers da Prússia arrancam para Ocidente. De novo. Um novo homem levantar-se-à, messiânico e enlouquecido, saído da multidão..

13.12.10

Neo-realismo

Era domingo e chovia. Mas fomos visitar o Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. Para mim uma vez mais, mas sempre uma primeira vez. Rever o que foi a luta cívica e a sua expressão na arte. Capas de livros que são marcos desse combate. Filmes, músicas, pintura, tapeçaria. A batalha pelo conteúdo, pelo significado, a batalha pela forma, pelo significante. E lembro-me que ainda apanhei os estilhaços dessa polémica:os que achavam que a Arte não podia ser panfleto, evitando ser ideologia para poder ser política por outros meios. Ali estavam tantos, mesmo um que veio, cordeiro arregimentado, da Mocidade Portuguesa, outro que se perdeu, cavalo em espanto, pelo labirinto do dadaísmo ou coisa como tal sentida.
Procurei-a, porque tinha de estar, a Seara Nova, ainda de capa singela, sem imagem nem cor, a Vértice, obrigatória, de Joaquim Namorado.
E ei-lo, ali estava, "António Vale", uma das mais lúcidas inteligências que o País produziu, carácter temperado a aço, a pôr ordem naquelas desordenadas hostes, em que também vogavam boémios improdutivos e reprógrafos burocratizados, a mostrar caminho, como se houvesse uma moral superior dos artistas que desse disciplina e clarim àquele pequeno pelotão. Foram poucos, mas tinham uma consciência social e uma cidadania a cumprir. O culto da personalidade era uma perversão. Hoje entrou na moda, o individualismo burguês a torná-lo exibição e espectáculo indecoroso.

1.12.10

Viva Portugal!

Não importa que seja hoje. Não interessa que se misture ou tenha misturado em tempos no mesmo dia o Camões, a Raça, as Comunidades. Quero lá saber que os nacionalistas e os internacionalistas se não entendam. Desinteresso-me de me preocupar se a perda da independência foi uma mera confusão de sangues reais ou de conveniências matrimoniais entre casas reinantes. Não é minha a polémica que consiste em saber se a nobreza portuguesa nos vendeu à Espanha ou foi o nobre povo quem nos livrou dos Filipes. São enigmas o saber porque é que não gostamos de ingleses e foram eles quem nos ajudou a desembaraçar dos invasores franceses que, apesar disso, marcaram a nossa cultura, durante séculos.
Há só duas coisas que importam quando uma pessoa se pergunta porque é que hoje é feriado: como é possivel que sejamos a mais velha Nação independente da Europa e estejamos em vias de perder o respeito por nós próprios, sujeitos a uma classe dirigente de tão baixo nível, a uma Pátria que a Fazenda amesquinhou, a um Povo que corre o risco de se tornar, pedintes, nos romenos do Ocidente, à porta das igrejas, agarrado ao sebastianismo da Fé?
Hoje, dia primeiro de Dezembro, não é só dia de Portugal, é dia de pensar como se salvará Portugal! A bem ou a mal...

28.11.10

O baixo preço

O capitalismo ocidental enriqueceu à conta da exploração cruel da produção asiática e africana, acumulando com os seus salários de fome. Hoje vêm dali os novos senhores, quantos cleptocratas, que tudo compram. Mas por maior que seja a fome em Portugal a deles é sempre maior: é a fome das populações por alimento, a fome de uns quantos dirigentes por lucro fácil. O nosso baixo custo é o seu alto preço.

19.11.10

Ajoelhar, que é o Rei!

Quando há uns anos fiz parte do grupo de ligação luso-chinês, até ser corrido pelo ministro Jaime Gama que achou que outro devia aquecer o lugar, aliás gratuito, tivemos uma reunião em Pequim e um passeio à Manchúria. Do programa fazia parte acordar cedo, sermos metidos numas carrinhas e fazermos uma viagem a um lago, onde desfrutaríamos a vista não fosse estar uum tal nevoeiro que seria lógico aparecer o Loch Ness em vez do tigre da Manchúria.
Á saída do Hotel dei como uma cena extraordinária: uma fila gigantesca de automóveis cujos pachorrentos condutores aguardavam há horas na faixa esquerrda que Suas Excelência - nós - passássemos na faixa direita. Nem um sinal de impaciência, antes a asiática resignação marcava aqueles rostos inexpressivos.
Quando regressámos à noite, a cidade dormitava, as ruas desertas, os batedores que marcavam a dianteira ligaram as sirenes atroando os ares com um insuportável chinfrim.
Porquê? Porque o poder marca a sua presença assim. Imagino que nos tempos antigos a soldadesca da guarda entraria na casa dos habitantes e os varreria a varapau só para se lembrarem entre nódoas negras e ossos partidos que vinha lá o Mandarim.
Aqui no chamado Ocidente como hoje estamos mais brandos pára o trânsito e fecham-se as ruas a ponto tal que quando Suas Excelências passam por cima do chão as toupeiras humanas que frequentam o metro ficam inibidos de usar esse rastejante meio de transporte subterrâneo.
Tudo isto cheira menos a medidas de segurança mais a opressão e arrogância. Como somos o submundo, falidos e pedintes, submetemo-nos, à chinesa, para nos irmos preparando porque vem aí a China. Haja pois no rosto de cada um sorriso sínico.

6.11.10

O famélico garnizé

O Senhor Deng-Xiao-Ping explicou um dia à Senhora Tatcher que Macau e Hong-Kong eram duas galinhas que punham ovos de ouro e os chineses gostavam de ovos. Ora sucedia que as galinhas punham ovos de ouro sendo apascentadas de modo capitalista e colonialista. E os chineses continentais não sabiam tal modo de apascentar tais galinhas. Por isso, elas haveriam de ficar durante cinquenta anos entregues ao cuidado dos capitalistas e colonialistas portugueses e ingleses que vinham delas tratando.
Vigoraria assim na China o princípio «um país dois sistemas».
E porquê cinquenta anos? Porque era o tempo de que a China precisava para alcançar as metas de crescimento ocidentais.
Ei-los, pois, agora, os chineses, a comprarem tudo quanto há, incluindo o que em Portugal mais há: a dívida.
Gorda que está, a galinha compra o próprio dono do galinheiro, o famélico garnizé.

A tenda dos tintins

Espantam-se? Mas que geração é esta que está hoje no poder e no mando no sector público, mesmo onde eram dispensáveis, e no sector privado onde conseguiram tornar-se úteis porque necessários? Aquela que gerámos, cobaias na instrução do propedêutico e do serviço cívico e do unificado, fruto na educação dos nossos complexos de progenitores liberais e permissivos. A que aprendeu a arregimentar-se nos partidos como forma de fazer carreira, os partidos a que demos existência, entregando-lhes primeiro o Estado, depois o País. Os consumistas, egoístas, aqueles que não passam os apontamentos das aulas aos colegas para que eles não lhes passem à frente na classificação. Os que se colam aos pais e deles vivem, incapazes de deitar a mão ao esforço do sustento próprio. O fruto da desagregação dos nossos lares. Aqueles para quem o último mestrado corresponde o primeiro desemprego. 
Somos, enquanto País, a mistura complexa de cinquenta anos de ditadura de Estado que caiu de podre e de vinte e cinco de socialismo de Estado que se desmoronou. À lógica do funcionalismo somámos a do clientelismo.  
Falido e desacreditado esse Estado, damos connosco a boiar no charco liberal da desregulação, no pântano do mercado e suas monstruosas criaturas: a economia sufocada pelas finanças, a produção ao serviço da dívida.
A República Popular da China compra a dívida externa de Portugal, porque a Nação dos Portugueses se tornou numa tenda de tintins. O Fundo Monetário Internacional pode tomar conta disto, porque tal como os que vão aos Casinos de Macau, na roleta do mercado de capitais, estamos nas mãos das casas de penhores. As seitas encarregam-se do resto.

5.10.10

Republicanos pela República

Assim como não tivemos uma só Monarquia não há uma só República. Temos sim um regime que atravessou a parte final da Monarquia e se consagrou republicanamente, o da partidocracia que, em rotativismo devorista, vai depredando os bens da Nação distribuindo o grosso pela cacicagem e as sobras pelas clientelas. O Salazarismo com a ideia da União Nacional que não era partido tentou a ficção de um Estado fora dos interesses, devotado abstractamente à Nação. Só que a União dos Interesses Económicos tem mais força e mais tentáculos. A liberdade cedeu ante os monopólios, a democracia ante as cliques partidárias, a fraternidade ante o egoísmo consumista.
Resta, hoje, dia 5 de Outubro, ao entardecer, a ideia de revolução, que se é o que hoje se comemora, é justo seja comemorado! Republicanos pela República contra a nova casta senhorial, às armas!

A União dos Interesses Económicos

Assim como não tivemos uma só Monarquia não há uma só República. Temos sim um regime que atravessou a parte final da Monarquia e se consagrou, o da partidocracia que em rotativismo devorista vai depredando os bensda Nação distribuindo o grosso pela cacicagem e as sobras pelas clientelas. O Salazarismo com a ideia da União Nacional que não era partido tentou a ficção de um Estado fora dos interesses, devotado abstractamente à Nação. Só que a União dos Interesses Económicos tem mais força e mais tentáculos. A liberdade cedeu ante os monopólios, a democracia ante as cliques partidárias, a fraternidade ante o egoísmo consumista. Temos um Estado que sai caro à Nação! A frase não é minha.

Saúde e fraternidade

Hoje, dia da República, e com ela da liberdade cidadã, preso a trabalhar porque tenho uma profissão liberal, fui - ó deformação profissional esta - buscar a um velho fólio que o Barbosa de Magalhães e o Pedro de Castro compilaram, os primeiros diplomas legais do novo regime.
A 5 ei-la a proclamação, pelas onze horas da manhã - hora precisamente a que acordei hoje, iracundo, não diria de barrete frígio que não uso nem na cama que, aliás, pouco tenho frequentado para dormir - gritada, como se sabe dos Paços do Concelho.
Mas logo a 7 um decreto a rezar - rezar não calha bem pois viria logo a 8 o diploma contra a apodada «reacção clerical» - a prorrogação «por 10 dias ou 3 audiências os prazos judiciais de qualquer natureza, os quais estando a correr nos dias 4 a 7 do corrente, deviam ou devam findar desde 4 a 13 do mesmo corrente mês».
Retroactivo, processual, judiciário, o Governo Provisório lá teve que cuidar dos prazos nos tribunais para que os republicanos revolucionários e os talassas reaccionários não ficassem à mercê da indiferença forense.
Comemorando a República com os prazos correntes, permita-se-me o grito que a 8 teve força de lei quando a 8 um decreto estipulava que a correspondência oficial terminaria «com as palavras "Saúde e Fraternidade". Viva!

25.9.10

A vida simplificada

Vejo numa personagem de um romance de Vergílio Ferreira aquilo que deve estar na cabeça de muita gente que faz com sejamos o País que somos: «os que chegam a constituir uma elite efectiva, devem assegurar às massas inferiores a felicidade na aproximação dos irracionais, mantendo-lhes a vida simplificada».

21.9.10

A Censurável Censura

Este texto ilustrou uma exposição que se realizou em Faro, no Pátio de Letras, no dia 25 de Abril, a propósito da Censura Prévia. Expostos livros de um notável livreiro da cidade e um homem bom, Duarte Infante.

Por um lado o controlo do espírito, por outro a engenharia das almas. A censura ao pensamento garrotava a liberdade de expressão, asfixiava a criação. O 25 de Abril trouxe, enfim, a liberdade
Em Portugal a mordaça tem uma longa tradição.
Quando, a 5 de Abril de 1768, o Marquês de Pombal centralizou no Estado o sistema de controlo ao conteúdo dos livros abria-se a época moderna na repressão do espírito. Criou-se a Real Mesa Censória, confiada a Frei Manuel do Cenáculo, para «livros e papéis perniciosos». Veja-se.
A Igreja perdia o poder de censura que até então gozava o chamado Santo Ofício da Inquisição e que o seu Index Librorum Prohibitoru , de obras vedadas à impressão ou à venda, saído do Concílio de Trento, bem expressava. Esclarecedor.
A liberdade de imprensa só seria proclamada com a Constituição de 1822, mas duraria apenas até 1924. Restabelecida com a Carta Constitucional de 1826, cairia de novo para não mais vigorar até à República. Quer por leis, quer por actos administrativos, quer por vias de facto, o exame prévio e a apreensão de livros proibidos continuariam. Com a ditadura de João Franco o governo monárquico encarniça-se na luta contra a propaganda adversa, congregando um juiz para o efeito, o célebre Veiga, que dirigia o Juízo de Instrução Criminal.
A liberdade republicana, que a Constituição de 1910 legalizaria, teria também duração efémera pois logo em 1912, por lei, «dezenas de jornais não republicanos, especialmente monárquicos e católicos, mas também sindicalistas e anarquistas, foram encerrados e os seus proprietários presos e deportados».
O advento do governo de Sidónio Pais, em 1917, daria base legal ao afinamento do sistema censório, a entrada de Portugal na I Guerra justificaria mais apertado controlo aos livros e demais publicações.
O Estado Novo restabeleceu o exame prévio em Setembro de 1926. A Constituição de 1933 abria a porta à legitimação de uma “política do espírito”, que uma apertada vigilância às publicações controlava, impedindo a divulgação do contrário à Situação. Um Decreto de Abril de 1933 sujeitava a censura prévia as publicações que «versem assuntos de carácter político e social». Os próprios livreiros eram intimados a controlarem o que vendiam, sob pena de pesadas multas. A PIDE e outras polícias frequentemente efectuavam apreensões nas livrarias e tipografias. Pode ver-se.
Após a morte de Salazar e com a liberalização do regime, em 1972, sob o governo de Marcelo Caetano, pouco mudaria salvo alguma abertura de critério, mesmo assim hesitante. O lápis azul dos censores à imprensa mantinha-se no mundo editorial. A Direcção dos Serviços de Censura e seu Gabinete de Leitura Especializada, A Direcção-Geral de Segurança e os Tribunais Plenários, encarregavam-se da evolução na continuidade. Naturalmente.
Haverá hoje quem se lembre do que é não ter a liberdade de escrever nem a possibilidade de poder ler?

Como se fazia a Censura aos livros? O Regime que o 25 de Abril depôs usou todos os instrumentos. Serviços públicos, polícias, auto-vigilância por parte dos livreiros, dos tipógrafos, dos escritores, dos próprios leitores


Primeiro a criação dos Serviços de Censura que com Marcelo Caetano se passou a chamar eufemísticamente de Exame Prévio.
Depois a atribuição do julgamento dos crimes de imprensa a um tribunal especial o famigerado Tribunal Plenário, sito na Boa-Hora, onde eram julgados os crimes contra a segurança do Estado. Ilustrativo.
Além disso, um sistema de auto-policiamento pelo qual as tipografias e os próprios livreiros arriscavam pesadas multas e o próprio encerramento no caso de permitirem que viessem à luz livros proibidos e inconvenientes para os padrões de moralidade oficial e para a subsistência do próprio regime político.
Quantos livros proibidos foram vendidos «por baixo do balcão» a leitores em quem se poderia confiar? Quantas tipografias clandestinas? Sabe-e lá.
Em 1934 a Direcção Geral de Censura à Imprensa enviava uma circular aos livreiros apelando a que fossem «colaboradores preciosos» da Censura, a bem da «valorização moral da Nação».
Em 1972 o Ministro do Interior, Gonçalves Rapazote dava instruções à Direcção-Geral de Segurança (ex-PIDE) para «organizar um plano de visitas» a tipografias que se dedicam à impressão de «livros suspeitos – pornográficos ou subversivos» e que fosse informado os Grémios das Artes Gráficas e dos Editores e Livreiros «da acção de repressão que vai ser desencadeada contra os responsáveis pela impressão, distribuição ou venda de publicações pornográficas ou subversivas». A política não mudava.
Enfim, uma prática de intimidação e de provocação, junto dos escritores e dos próprios leitores.
Quantas vezes se forravam os livros mais perigosos a papel pardo para não se verem as capas? Erro o medo de ler.
A Sociedade Portuguesa de Escritores foi extinta em 1965 pelo Governo e assaltada e desmantelada por elementos ligados à PIDE e à Legião, depois de atribuição de um prémio ao escritor angolano Luandino Vieira. Veja-se.
Um escritor católico, conservador, Alçada Baptista, escreveu no seu livro Conversas com Marcelo Caetano, de quem era amigo, acerca do Exame Prévio: «é um poderoso elemento de redução de mim próprio (…) e que vai ao ponto de sentir inibições quanto se trataria de aplaudir os poderes nas coisas que mereceriam o meu aplauso, ou de criticar a oposição naquilo que mereceria a minha crítica»
Hoje, que estamos em democracia e na sociedade digital, a Censura acabou ou sofisticou-se?

16.8.10

A vida sobejante

Pela noite sente-se o seu pesado arrastar. Levam no seu bojo o resto, os sobejos e os remanescentes, o que já não se quer, o que nunca se quis. Há neles o que tantos desejariam, o que muitos nem sabem que existe. Em alguns fins de jantar é um festim de desperdícios. Muitos chegam cheirar bem. São a demonstração da generosidade involuntária, da oferta inútil. Às vezes homens e cães lutam pela posse das suas entranhas. Irmanados na necessidade, rosnam contentamento. Depois esvaziam-nos indiferentes homens nocturnos, madrugadores, profissionais da remoção. Uma vida sobejante termina na nitreira. No dia seguinte recomeça o ciclo da podridão.

4.8.10

O pato coxo

Foi só uma pancadinha seca. No instante um tiro. O «rac-rac-rac» e o andar à pato-coxo mostrou logo o que se tinha passado. Um segundo de distracção e claro uma cacetada da jante numa esquina do passeio e lá vai pneu. Nesta matéria, como nos sapatos, nunca basta um. Pelo menos dois. «Só que eles já andam um pedaço carecas». Como eu! Quatro. «Olhe o meu filho outro dia pediu-me uns ténis a 120 euros cada um», disse-me o homem do reboque. Pois o meu SAAB deve calçar-se na NIKE e ainda mais, pela certa.

1.8.10

E viva El Gordo!

Houve tempos em que uma pessoa acreditava porque estava cientificamente provado. Por exemplo que beber leite fazia bem à osteoporose. Agora decobriram que os adultos não devem beber leite e juntá-lo ao café gera enfartamento, inchaço no ventre e flatulência. Agora uma pessoa espreita as notícias e lê que «dormir mais e menos de sete horas por noite aumenta o risco de doença cardiovascular, a principal causa de morte nos Estados Unidos, revela um estudo americano hoje divulgado» e logo antes que «Os suplementos de cálcio podem aumentar o risco de sofrer um ataque cardíaco (infarto do miocárdio), afirma estudo publicado nesta quinta-feira no Jornal Médico Britânico, periódico da Associação Médica Britânica».
Houve tempos em que a filosofia era apenas uma impressão, a ciência a razão. Hoje uma pessoa conclui que a ciência é um interesse. É que foram as vacas loucas e vieram as pandemias de sei que outras alimárias. Concluiu-se que a norte do Mediterrâneo ia tudo desertificar e agora chove que os cães a bebem de pé.
Depois há a Rainha Vitória que bebia gin à farta e o Winston Chuchill que fumava charutos copiosos e de velhos morreram.
Houve tempos em que uma pessoa tinha fé no saber. Hoje limita-se a ter caridade pela ignorância.
No meio disto tudo uma notícia alegra: «A praia chama-se Saúde e foi um dos locais escolhidos para a campanha da Associação de Doentes Obesos e Ex-Obesos de Portugal (ADEXO) contra a Obesidade, uma doença que em Portugal afecta já 17 por cento da população, escreve a Lusa».
Emagrecer é divertido, dizem...

25.7.10

A Sinarquia

Claro que quando em 30 de Novembro de 1807 o general francês Andoche Junot ocupou Lisboa, consumando a primeira invasão francesa e uma deputação de maçons lhe foi apresentar cumprimentos, e no ano seguinte uma delegação oficial do Grande Oriente o foi saudar, por ele ser «irmão» também e aventalado e com pretensões ao Grão-Mestrado da que passaria a ser, extinta a Casa de Bragança, o ex-reino de Portugal, a associação da pedreiragem passou por um dos seus piores momentos em termos de respeitabilidade e de integridade.
Não foi menor o aperto quando em 1935 o Presidente da Assembleia Nacional, o professor de Direito José Alberto dos Reis, ele também "filho da viúva" viu o hemiciclo aprovar a lei José Cabral dita contra as «associações secretas» mas que visava reduzir à inactividade os sob os auspícios do Grande Arquitecto do Universo se reuniam em loja. Lei que o ex-maçon Presidente da República Óscar Fragoso Carmona promulgou.
Foram estes entre outros momentos que se reviveram ontem acaloradamente em Faro até pelas uma e meia da manhã quando da apresentação do livro do Luís de Matos. Houve quem clamasse que já estava tudo nos Protocolos de Sião. A ideia do autor é a de uma Maçonaria Invisível que assegure o governo do Mundo. Chama-lhe Sinarquia. Não no sentido de uma cavalaria espiritual redentora. Espécie, sim, do Governo dos mais sábios. O problema é se dá em ser o governo dos mais espertos. Disso já temos. Obrigado.

20.7.10

A vergonhosa homenagem

Nasci em Angola. Sai da terra onde nasci quando começou a guerra que levaria à independência do País. Nunca me senti "menino branco" em terra africana. Não sou negro de raça. Compreendi as razões da revolta local por ter visto em miúdo dísticos no cinema a dizerem «probida a entrada a indígenas», quando vi os tais «indígenas» a levarem palmatoadas - como se crianças fossem em escolas de educação violenta - dadas por cipaios à porta da Administração do Concelho. Compreendi a contra violência quando me chegavam ecos de brancos serrados ao meio e com os olhos arrancados que livros como "Sangue no Capim" nos traziam como memória. Percebi tudo quando vi o poder branco a cair de podre com a chegada dos belgas, espavoridos, a Malanje, vindos em fuga em carripanas com tudo o que podiam trazer, sobretudo a própria pele. Deixei de entender quando ouvia de noite a metralhadora no quartel e me falavam entre dentes na vala comum, quando me explicavam que a PIDE e militares interrogavam negros arrancando-lhes as unhas com um alicate. Entendia ainda quando percebi que para o meu pai, aos sessenta anos, era já Angola e não Viseu a sua terra. Compreendi, enfim, muita coisa quando soube, ao estudar, que os EUA e a URSS tinham partilhado Portugal e as suas colónias e caiu como um tordo Vasco Gonçalves e os cubanos largaram Angola, a geo-estratégia imperial a ditar a sorte das Pátrias alheias.
Assisti ao Conselho de Ministros que aprovou a independência de Angola, ouvi a seráfica explicação do general Costa Gomes, «crachat de ouro» de PIDE, agora Presidente da República da democracia, perorando, frio, em prol do reconhecimento do governo do MPLA, e corajosa intervenção de Salgado Zenha em defesa da dignidade de Portugal, ele que estivera preso com Agostinho Neto em Caxias.
Choca-me que Aníbal Cavaco Silva tenha ido a Angola prestar vassalagem. Por mais alto que falem os interesses, por mais esperanças que tenhamos que os caloteiros angolanos nos paguem, por mais País que o dinheiros dos plutocratas angolanos esteja a comprar.
Ofende-me que tenha ido prestar homenagem a Agostinho Neto quando o Estado que Agostinho Neto inaugurou ainda não teve para connosco a decência do reconhecimento.
Ante os escombros de uma Nação à mercê da miséria e da rapina, haja a decência de exaltar o que os portugueses fizeram por Angola. Colonizadores, colonialistas, negreiros, miscigenámo-nos, amámos aquela terra, demos-lhe o que nunca teve o que ainda não conseguiu ter. Haja vergonha, pois!

18.7.10

A velha bicicleta

Passeava no Jardim da Estrela. Pedalava uma velha bicicleta. Empinado na "burra", os olhos como faróis olhava um ponto situado num qualquer infinito em frente a si. Ia a escrever um ponto abstracto, mas aquele era concreto, se bem que imperscrutável. Perseguia-o zaranguitando pelas ruelas arborizadas. Na frente do biciclo um rádio, sanfona roufenha, verbena a pilhas, roncava umas irreconhecíveis musicatas.  
Perseguidor do sossego, imaginei-o uma força do Destino contra a minha pessoa, os outros indiferentes, vindo das retretes da vida dejecta para a folhagem morna desta tarde modorrenta.
Depois percebi. No dorso da camisola laranja anunciava uma tasca de caracóis. Caracóis com baba, dos que sabem a urina e cheiram a desolação. Um mundo publicitário volteava em torno de mim, infernal, em soltura ofensiva, caracoleante.