20.7.12

Hermano Saraiva

Unamuno dizia que somos um povo de suicidas. Acrescento que somos um País com a idolatria pelos mortos. Cultivamos a desmesurada lembrança por aquilo que em vida esquecemos. Isto não se aplica a Hermano Saraiva, irmão do falecido historiador e crítico da Literatura, António José Saraiva, tio do director de um semanário, José António Saraiva. Porque dele pode dizer-se que o País na sua generalidade guarda uma memória e pode dizer-se uma lembrança amável e grata.
Claro que existem os que - sobreviventes da geração de sessenta e da crise académica de Coimbra - não esquecerão o seu dito «a ordem em Coimbra será mantida!», proclamado, em estilo iracundo, quando se deram os graves incidentes naquela Universidade que levaram à intervenção da força policial e a cenas de violência nas ruas.
E claro que existem os que estiveram no campo da política "oficial" em desacordo com ele, os próceres do regime anterior, que o julgavam um heterodoxo, e os opositores, que o julgavam um homem da Situação. Ainda hoje, o corpo por descer à Terra, ecoavam os epítetos de "fascista" a resumirem uma vida política que do fascismo se não reclamou, porque essa palavra é um anátema que fuzila de imediato aquela contra quem seja atirado, qual pedra certeira a desfigurar o rosto.
Um dia a História trará ao de cima o nome daqueles que fascistas, sim, no sentido técnico do termo, após o 25 de Abril entraram directamente para partidos de esquerda, onde foram recebidos sem caução mas com unção e onde, convertidos, abjuraram tudo aquilo a que antes tinham declarado servil obediência.
Não vim aqui escrever sobre José Hermano Saraiva por causa disso. Sim para lembrar uma história que ele contou nos fascículos auto-biográficos que publicou e que li na totalidade. Lembro o episódio porque revelador de muitas coisas numa só história. Ei-la.
Comemorava-se então um dos aniversários da Revolução Nacional do 28 de Maio com cerimónia luzida na Assembleia Nacional. Previa-se que usasse na palavra o Dr. Melo e Castro, líder da União Nacional, o "partido" único que o salazarismo consentia. Mas, eis quando, primeiro num murmúrio, depois com certeza, veio ao de cima a notícia de que um jovem, algo dissidente do regime, poderia ser chamado a, em jeito de contraponto, perorar também no hemiciclo de São Bento: o Dr. Hermano Saraiva.
O júbilo encheu então o peito daquele jovem político em ânsia de ascensão, confessa-o ele naquela crónica deste momento da sua vida. Ademais, porque no acto poderia estar e esteve o próprio Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar.
Enfim, decorreu o cerimonial e o orador teria atingido, segundo a encomiástica descrição que faz da sua intervenção, o clímax da retórica. A ponto de, confidencia, ter surpreendido em certo momento, uma furtiva lágrima, no frio rosto do Chefe, usualmente distante e inexpressivo.
Tudo estaria bem não fora o facto de o seu discurso ter de tal modo caído no goto de Salazar que este, pela noite, ligou ao então director da Televisão, o Dr. Ramiro Valadão, perguntando-lhe qual o motivo pelo qual não se passara no pequeno écran a fala do Dr. Saraiva.
Eis o ponto, a crise, a agonia. Incapaz de confessar que, a ter de escolher o que filmar - num tempo em que nada era em vídeo mas tudo em película de cinema, donde oneroso, - se decidira no Lumiar que se filmaria sim o líder da União Nacional, até pelo seu posto graúdo no regime, e não aquela figura esperançosa mas ainda a fazer o seu cursus honorum na escadaria do poder, Valadão, engasgado, garantiu que, sim, que tudo tinha sido filmado, incluindo o Dr. Saraiva, naturalmente, estivesse pois Sua Excelência tranquilo, que até se preparava um programa especial para tal notável peça oratória.
E - acreditem porque é o próprio que o relata - sob apertado juramento, aproveitando a noite, uma equipa de TV, tomou imagens, no vazio parlamento, o Dr. Hermano Saraiva a discursar, tentando, puxando pela sua extraordinária memória, repetir os trejeitos, os gestos, os tiques, as expressões, com que animara a sua eloquência, não fosse o Chefe, manhoso e bom observador, dar por ela quando o programa "especial" viesse para o ar.
Qual conjura, ritual de sociedade secreta, cumpriu-se para que os factos pudessem tornar-se verdade: a RTP filmara tudo quanto o seu director garantia.
Eis, no dia de hoje, em que nos deixou, essa interessante porque complexa personagem, o que me apeteceu contar. É uma história sintomática, risonha, que talvez traga o justo equilíbrio entre o que foi, o que viveu e o que nos deixou.
Nele estiveram as contradições de um povo, mais a dedicação ao seu País e sua História.
Claro que, País de carrancudos, os académicos da Historiografia detestam-no, porque cometeu o sumo pecado, segundo eles, de a "vulgarizar"! Nisso estão, conservadores, irmanados com os seus opostos revolucionários. Aqueles porque querem uma História só de factos sem muitas ideias complicativas, estes porque a querem só de ideologias simplificadoras.
Com Hermano Saraiva o Povo, mesmo quando iletrado, aprendeu uma História de sentimentos, o amor a Portugal.

17.7.12

Falar do que se conhece

Conto-a como ma contaram hoje, pela fonte autêntica, que me ressalvou que o António Alçada Baptista já a havia relatado mas omitido a origem.
Discutiam-se em animada tertúlia os méritos científicos do professor Egas Moniz, o nosso primeiro Prémio Nobel. Em causa a lobotomia, cirurgia de ablação de um dos lobos cerebrais, tida então como método adequado para doenças do foro neurológico.
Animada a contenda verbal, esgrimiam-se antagónicos argumentos por e contra o laureado, apodado por uns de «génio» e de «criminoso» [não menos!] por um dos intervenientes na disputa.
Como em todas as discussões, e como se o colectivo dos altercantes precisasse de tomar fôlego, fez-se silêncio, um denso silêncio. «Os brasileiros dizem que passou um anjo», explicou-me o meu interlocutor, querendo encontrar melhor expressão para essa pausa prenunciadora de novo alento na refrega, pois naquele exaltado estado das paixões argumentativas, tréguas era algo a nem pensar.
«Foi então que ele entrou em cena», continuou, e eu colado ao telefone a ouvir, expectante, a história e a tentar adivinhar-lhe o percurso. «Era um homem simples, tinha vindo para Lisboa sem meios nem esperanças e lá lhe arranjaram emprego como empregado de sapataria, o meu pai», prosseguiu. «Só que, aplicado e cumpridor, melhorou de vida, e acabou numa zona chic onde, por via dos sapatos, acabou por conhecer gente muito acima da sua cultura e pouca instrução».
Tinha estado calado, modesto, o silêncio como ponto de honra da sua modéstia intelectual, incapaz de intervir sobre aquela discussão que esventrava a Ciência, a Filosofia, a Moral, a Política. «Mas não se conteve. Chegados àquele ponto sobre quem era, afinal, o professor Egas Moniz, ousou falar, porque, afinal, de todos eles, era ele quem o conhecia». 
Ante a possibilidade adivinhada da sua fala, susteve-se ainda mais o areópago. Já não era a tensão voltaica da electrizante contenda anterior, eram agora os nervos retesados à espera do que dali sairia que poderia, ao limite, dar vitória a um dos campos adversários. «Conheci-o sim senhor ao professor Egas Moniz!». «Conheci-o, pois, calçava número 39».
Grande pai! 
Eis, nesta história, uma lição de moral: se todos falassem do que sabem, Portugal era mais fácil.

8.7.12

O velociraptor

Havia na Malanje em que eu nasci uma senhora que para não ficar diminuída ante todas as outras cujos consortes antecediam o nome de um qualquer título académico, que afirmava, soube-o pela crónica familiar em que estas histórias se contavam, as de um mundo pífio a querer alçar-se em palafitas de vaidade, que o seu marido excelentíssimo, ou como dizia uma outra «o senhor que faz o favor de ser o meu marido» era «médico auxiliar da segunda classe».
O mistério foi rapidamente desvendado quando se descobriu que o homem era enfermeiro.
Lembrei-me disto sobre a circense história dos graus académicos e do velocímetro dos mesmos. Não por ser interessante mas edificante.

P. S. A imagem é a de um velociraptor, criatura arguta e rápido predador. Supunha-se extinto.

6.7.12

O pensar e o existir

O que são as redes sociais? 
Uma forma de cada um dizer o que pensa e o que se sente. Assim se assegura a liberdade de expressão quando a liberdade de imprensa a não permite.
Uma forma de cada um mostrar o que criou como artista. Assim se assegura a difusão cultural quando o mercado editorial não o possibilitaria.
Uma forma de cada um exprimir o que opina enquanto cidadão . Assim se assegura a participação cívica onde a partidocracia o impediria.
Mas as redes sociais são também um meio de cada um assegurar, como num jornal de parede, a manifestação do seu diário íntimo. 
Iludidos pela ideia de que estamos ante "amigos", damos conta do por onde anda o nosso ser exterior e o que povoa o nosso ser interior. 
O resto é a mundividência de cada um. Há os sedentos de interlocução, os carentes de palco. Há os que pretendem aplauso, os que esperam compreensão. 
Encontra-se ali o sublime e o patético. O ridículo também, este quantas vezes corporizado na tentativa desajeitada de se encontrar eco, outras por virtude das interpretações a que se prestam os actos e os gestos, as carinhosas e as malévolas.
É o reino da fantasia. A realidade perde a sua natureza material. O humano transmuta-se em mito. O facto cede ante a sua interpretação. 
Mundos de sombras e de espelhos, potencia a solidão sob a aparência de companhia, o equívoco à conta de tanto esclarecimento.
O FB esse pergunta ao abrir «o que está a pensar?» querendo significar «o que está afinal a fazer?». Essa a questão. O cartesiano «penso logo existo» dá vida a quem imagina que só assim a tem.