28.12.11

O balcão dos despejos

Amanhã, segundo li aqui, o Conselho de Ministros aprovará um diploma legal que «tirará os despejos dos tribunais», criando um «Balcão de Despejos» ou coisa de nome semelhante, a cheirar a efluente.
Quer isto dizer que a cessação dos arrendamentos vai ser subtraída à competência dos tribunais. Em nome da celeridade, porque se concluiu que nos tribunais levam eternidades. Em nome da simplificação, porque a acção judicial respectiva estará pejada de incidentes e complexa tramitação.
Tudo isto poderia ser mudado mantendo-se a competência judicial.
Só que há só duas coisas que tudo isto esquece. Duas coisas que passaram a pertencer ao mundo da Humanidade, a um tempo em que havia pessoas e não números numa estatística.
Primeiro, que o que está em causa é o fim do conceito de lar. A ideia de que o fim de um arrendamento e a desocupação de uma habitação equivale ao desarticular de um lar passou a pertencer à História, ao passado das preocupações colectivas, neste mundo actual de indiferença ante a sorte dos outros, ao passado da existência de famílias estruturadas.
Hoje o capitalismo fundiário tudo perverteu. Temos inquilinos a explorarem senhorios, sub-arrendando a preços leoninos e auferindo lucros à conta das esmolas que pagam como rendas, os prédios a desmoronarem-se. Temos rendas proibitivas porque o custo de construção subiu exponencialmente ante a especulação imobiliária. Arrendamentos a prazo porque nada resiste e tudo é precário. Gente que muda de casa como quem muda de camisa, casas dos pais e avós desbaratadas no adelo, no alfarrabista, os tarecos à porta da rua, porque já nem há quem os queira.
Ao mundo em que havia lares sucedeu o mundo em que existem assoalhadas.
Outra realidade que se esquece é que a judicialização dos litígios sobre arrendamentos partia do pressuposto de que estava em causa um direito fundamental, constitucional mesmo, o direito à habitação. Os despejos administrativos eram excepções em nome de valores públicos urgentes. O juiz surgia para que não houvesse abuso.
Hoje tudo mudou.
O balcão dos despejos vai ser a fossa do esgoto em que se tornaram os dormitórios em desagregação, lugares onde chegam diariamente exaustos os explorados do sistema, onde explode a violência de dias de horror, de onde saem pela madrugada crianças ensonadas para serem, elas também despejadas, em quem «tome conta» delas, até que, a altas horas, um dos pais acresça ao castigo do dia o esforço de os «vir buscar». 
Aí chegarão os despejos da falta raivosa de dinheiro já para pagar a renda, da ira incontida dos senhorios que pagam para o serem, dos intermediários interesseiros, das agências, e tudo muito rápido, muito simples, muito através de funcionários, precários eles também, a despejar assim o sistema falhe ou já não seja preciso ou na política se mude de ideias.
Pouco a pouco tudo quanto é humano sai dos tribunais. Um dia, ao lado das máquinas que vendem enlatados haverá neles computadores a darem sentenças por sms

20.12.11

Macau: foi há doze anos

Esperei que fosse meia-noite e chegasse com ela o dia 20 de Dezembro para republicar o que aqui escrevi o ano passado. Talvez seja uma noite de revivalismo. Talvez porque alguma coisa mudou para que tudo ficasse precisamente na mesma. Foi há doze anos. Na foto a "Rua das Felicidades".


«Foi há onze anos que Macau, território chinês sob administração portuguesa, foi devolvido à República Popular da China. Formalmente era uma zona híbrida na lógica do nosso Direito Ultramarino.
Há muitos modos de comemorar o facto ou apenas de o referir. No primeiro caso com alegria, no segundo com nostalgia. Há quem chore ainda perda da bandeira, como há quem chore a perda da carteira. Há quem ria por inconsciência alarve ou sorria por já nem querer saber.
Para o sub-consciente colectivo, amálgama irracional, onde se forma a ideia de Pátria e se deforma, através do Estado, a de Nação, com o fim de Macau Portugal reduziu-se ao ponto de partida. Fechou-se o ciclo do Império. Passámos a ser os portugueses enjoados em terra que nunca iriam à Índia, mais os portugueses náufragos desanimados que de lá voltaram.
Claro que a minha Pátria é, como disse Pessoa, a língua portuguesa e o que ela simboliza. Gastaram-se milhões em Macau para que ficasse essa língua de Camões, mas ela só resiste por imposição do Estado e por ainda haver ali portugueses na Administração e na vida empresarial. Em todas as outras colónias o português ficou naturalmente, fruto do amor e da mestiçagem, ali, na zona do Sol Nascente, só porque politica e legislativamente convém. Não é uma língua franca mas uma língua fraca. Ai de quem não souber ao menos inglês.
Sonhou-se que Macau seria, enfim, um caso de "descolonização exemplar", livre do opróbio do abandono, mas a sombra suja das negociatas a alto nível e da pilhagem à "árvore das patacas" criou uma macha que levará tempo a diluir-se como a água do Lilau, a que impede o esquecimento. 
Tempos houve em que ir para a Cidade do Santo Nome de Deus era sacrifício militar ou exílio de amores. Macau foi laboratório de pilhagem onde se gerou a moral rapinante que hoje sobrevooa Portugal.
Há, porém, um Macau de que pouco se fala, dos abnegados que lutaram na guarita do seu posto ou na enxerga do seu recolhimento, os que ali deixaram o espólio do seu amor àquela cultura e àquela gente. O Macau dos desterrados da sorte e dos opiados da má fortuna. Aqueles para quem a Fazenda foi madrasta e para os quais o Palácio foi indiferente. Esse Macau que gerou o macaense, língua de "papaeação", esse Macau que foi o nosso modo de ser colonial. O Macau missionário mesmo sem missas.
Foi há onze anos. Houve quem trouxesse contentores carregados de valores, houve quem se contentasse com o que a memória guarda.
Comemoro hoje Macau. Tenho comigo a "Estátua de Sal" de Maria Ondina Braga que ali viveu, como professora, em reclusão de alma, o coração em dor. «Assomaram-me as lágrimas a primeira vez que vi a "cidade dos barcos"», escreve. 
A cidade dos barcos é a cidade flutuante, a dos miseráveis, para quem cada pequena embarcação é casa e loja e caixão. A cidade dos que se amarram mais aos filhos ao madeirame flutuante quando toca a tufão e com ele o grito pavoroso de morte. 
Um pouco adiante dessa tragédia humana que bóia e assim sobrevive, o Casino, as jóias e as antiguidades, o ar condicionado e tudo quanto é luxo tecnológico e suas luzes meretrizes. Há onze anos estavam e ainda estão. É o Macau indiferente, para quem nenhum Império foi Lei nenhuma Senhoria abrigo. 
Devolvemos à China a galinha dos ovos de ouro. Depois de os ingleses terem devolvido Hong-Kong. Os diplomatas rejubilam com essa mísera vitória. 
Para a China eterna nada conta. A unificação da Mãe Pátria tem um nome e não está longe. Chama-se Taiwan. Um destes ouvir-se-à falar. Acreditem. É só Dragão acordar, vivificado».

18.12.11

É fartar, vilanagem

Publico tal como me chegou. dúvidas que o Tribunal de Contas terá encontrado nas contas municipais. Resta conferir pelo documento oficial. A ser verdade, a porca da política é mamada até à morte.


ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAÚDE DO ALENTEJO, I. P.: aquisição de 1 armário persiana; 2 mesas de computador; 3 cadeiras c/rodízios, braços e costas altas: 97.560,00€.

MATOSINHOS HABIT - MH: reparação de porta de entrada do edifício: 142.320,00 €.

UNIVERSIDADE DO ALGARVE - ESC. SUP. TECNOLOGIA - PROJECTO TEMPUS: viagem aérea Faro/Zagreb e regresso a Faro, para 1 pessoa no período de 3 a 6 de Dezembro de 2008: 33.745,00 €.

MUNICÍPIO DE LAGOA: 6 Kit de mala Piaggio Fly para as motorizadas do sector de águas: 106.596,00€

MUNICÍPIO DE ÍLHAVO: fornecimento de 3 Computadores, 1 impressora de talões, 9 fones, 2 leitores ópticos: 380.666,00 €.

MUNICÍPIO DE LAGOA: aquisição de fardamento para a fiscalização municipal: 391.970,00€.

CÂMARA MUNICIPAL DE LOURES: vinho tinto e branco 652.300,00 €.

MUNICIPIO DE VALE DE CAMBRA: aquisição de viatura ligeira de mercadorias 1.236.000,00 €.

CÂMARA MUNICIPAL DE SINES: aluguer de tenda para inauguração do Museu do Castelo de Sines: 1.236.500,00 €.

MUNICIPIO DE VALE DE CAMBRA: aquisição de uma viatura para o transporte de crianças por 2.922.000,00 €.

MUNICÍPIO DE BEJA: fornecimento de 1 fotocopiadora, "Multifuncional do tipo IRC3080I", para a Divisão de Obras Municipais: 6.572.983,00 €.

P. S. Fazem-me saber que estes dados foram postos a circular já durante o anterior Governo e que os números têm as casas decimais intencionalmente ou  não deslocadas. A ser assim, tenho de me penitenciar por ter dado crédito ao insólito e tê-lo transposto para o FB, onde várias pessoas tomaram os números como reais e possíveis. Recebi o conteúdo publicado por email, enviado por alguém que tenho por credível. Mesmo assim, ante o insólito dos valores coloquei a ressalva inicial «a ser verdade» e a circunstância de faltar conferir o documento oficial. Aguardo, mas uma coisa é certa: há quem acredite, eu incluído, que isto é possível suceder. O que é sintoma do estado em que está o Estado.

A Pátria madrasta

O caso podia ser este ou podia ser outro. Como nos aterros em cima de lixo cada buraco que se cava é mais lixo que se encontra. E Portugal está a tornar-se numa nitreira.
«A portuguesa Sofia Escobar é candidata ao título de Melhor Actriz de Teatro Musical em Inglaterra pela representação de `Maria`, em West Side Story, refere hoje o portal de espectáculos britânico Whatsonstage». Veja-se mais sobre ela, aqui.

É dela, porém, esta carta:

«Estimados amigos, aqui fica um desabafo. Como vocês sabem, todas as noites actuo em Londres para 1500 pessoas, durante a minha carreira fui nomeada para um Olivier e foram-me atribuídos outros premios no campo do teatro musical. As criticas internacionais tem sido felizmente muito positivas. Durante todo este tempo sempre expressei um carinho especial pela minha cidade, por isso me entristece tanto que depois de varias tentativas de minha parte e do meu agente me tenha sido dito que "estão a fazer o possivel" para me incluir nos espectáculos da Capital Europeia Da cultura em Guimarães. Depois de todo o carinho que recebo dos Vimaranenses e dos Portugueses isto dói-me muito. E não consigo evitar expressar desta forma que isto me deixou desiludida e acima de tudo, triste».

15.12.11

Mário Soares: o perfume barato do contar...

Sabia que me iria irritar. Que o livro Um Político Assume-se seria uma forma de se justificar perante a História, já que não perante a sua consciência. Mesmo assim insisti em querer vê-lo. Foi esta noite. Fui directo à página onde, na obra que diz ser de memórias políticas,  Mário Soares trata do que eu conheço de perto, por ter vivido na pele parte da trama: a história da sua ligação, enquanto Presidente da República, ao território de Macau. Detive-me nas linhas que dedica ao caso Emaudio/TDM. Poucas linhas, esclarecedoras linhas.
Diz que foi afinal uma campanha lançada «pela extrema direita» contra ele, para o envolver na história. Mente, por contrariar a verdade. A questão não tem a ver com políticos de qualquer quadrante que se tenham mobilizado contra si, mas com os factos que não se conseguem iludir.
Acrescenta que na origem da campanha esteve o Rui Mateus. Mente por sobre-simplificar a verdade. O papel de Rui Mateus é prévio na próxima ligação à sua pessoa, contemporâneo com todo o caso e posterior com maior intensidade no que se refere ao caso da Weidelplan/Aeroporto de Macau, mas o assunto transcende-o e em muito.
Para enxovalhar Rui Mateus, Soares diz que o conheceu empregado de um restaurante e que teve uma ambição tal que quis ser ministro dos Negócios Estrangeiros do seu Governo. Mente por omissão da verdade. A ligação entre os dois é muitíssimo mais vasta, próxima, e, é só ler o livro que aquele escreveu, para concluir que em matéria de "comedorias" o conhecimento não se limitou a restaurantes.
Remata, enfim, dizendo que envolveram no assunto o então Governador de Macau, Carlos Montez Melancia, que seria absolvido judicialmente. Mente por adulteração da verdade. A história do processo judicial ainda está para ser contada, como a história dos processos judiciais que nunca existiram em torno do caso. E como é que a absolvição do Governador neste processo deu em condenação em outro, o "caso do fax".
No momento em que escrevo estas linhas hesito se contarei ou não toda a história desse aproveitamento político, económico e pessoal da televisão de Macau que o livro tenta branquear.
Confesso que o descaramento do livro me incendeia um sentido de revolta pessoal. Que a "reconstrução" da História  me repugna como cidadão, como o faz tanta historiografia oficial arregimentada que tem andado a ser escrita em relação ao que nem regime político chegou sequer a ser e hoje está em estilhaços, o estado cadaveroso do País.
Sei que se o fizer, contando o que sei, serei sujeito aos efeitos da difamação e do enxovalho, porque ele e este estilo de obra são o rosto de um modo de ser que define a actual Situação, o verso dos que a criaram, o anverso dos que a consentiram. Talvez haja um direito à tranquilidade, minha e dos meus, que eu deveria saber preservar.
Por outro lado estou perante uma figura pública idolatrada a quem tantos perdoaram tudo, à direita e à esquerda, com quem tantos se arranjaram para tanto. Ficarei isolado e à mercê.
Talvez haja, enfim, o respeito devido à idade, se não houvesse o respeito devido à Nação de todos nós. Apodar-me-ão de desapiedado, logo quanto a um livro em que o seu autor se fez cercar, no lançamento, da imagem inocente dos seus netos.
Vou tentar tranquilizar o espírito e logo verei. Até passar o hálito da sordidez do caso e do perfume barato com que agora o vejo contado.

11.12.11

Outra vez, amigo?

Esta história é uma das mil histórias com a qual nos cruzamos todos os dias. Estava caído junto ao muro do jardim da Gulbenkian. Meio dormente, tremia, mal conseguia articular palavra. Álcool, frio, escassa alimentação, encovado, o olhar ausente, a barba desgrenhada, sujo. Tinha trabalhado no Jardim Zoológico, foi o que consegui saber. Tratava então dos animais. Hoje estava reduzido a ser um deles, partilhando com eles e a rua e os caixotes. 
Chamei o 112. «Outra vez, amigo?», perguntaram, amáveis, quando chegaram e deram com ele. Outra vez, para ambos, os resíduos da sociedade, como o lixo do nosso consumismo que pela noite é removido pela Câmara Municipal. Neste caso era um dos corpos que consumimos, seres humanos que são aquilo de que nos servimos até já não servirem.
Momentos antes, um pai e seus dois filhos tinham-se cruzado com a situação. Protegendo as crias, o progenitor puxou-as para que, afastando-as do passeio, seguissem pela rua, fora do contágio que pela vista se consumaria. 
«O que é aquilo?», perguntou um dos meninos. «Nada!», respondeu o papá. 
Tudo afinal do mais verdadeiro na nomenclatura do mundo em que vivemos: «aquilo» e «nada». A linguagem a trair os sentimentos, estes calcados pelas ideias, as interesseiras desinteressadas.

P. S. [a foto, evidentemente, não é a do que vi, mas afinal do que poderia ter visto. A banalidade da miséria torna-se a nossa má consciência numa consciência má, pela indiferença].

1.12.11

A lógica do encosto...

Há famílias onde os anos dos meninos se comemoram em dia outro que não o dia em que os meninos fizeram anos, porque é assim que dá jeito. Porque no dia do aniversário os meninos tinham aulas e não podia ser. Porque nesse dia os papás não podiam e tinha de não ser. Porque os amigos assim no dia errado já podem vir à festa que no dia certo seria para não haver. Além dos desgraçados que nasceram a 29 de Fevereiro.
Foi com base nesta conveniência que há quem pense «encostar» [termo fantástico] os feriados aos sábados e domingo. Porque, assim, celebra-se o dia trabalhando para o esquecer e apouca-se a comemoração do dia com a farsa de que se o celebra descansando, sem pensar nele. 
Mas há uma coisa que esses luminosos tecnocratas se esqueceram. É que há um dia para tudo, forma de haver um dia para nada.
O Carnaval dos dias comemorativos está a tingir de ridículo esta nossa sociedade: é o dia disto e o dia daquilo e o dia de aqueloutro. Convencionou-se que há um dia para certas doenças, um dia para certas circunstâncias, um dia para certos factos. Tudo se transformou numa forma de nos dias seguintes ninguém querer saber do comemorado para coisíssima nenhuma. O 14 de Fevereiro é o Dia dos Namorados, o 2 de Fevereiro o Dia das Zonas Húmidas. O dia 21 de Março é o Dia Mundial do Sono o dia 23 o Dia da Meteorologia. O 3 de Maio o Dia Internacional do Sol o 4 o Dia Internacional do Bombeiro. A 22 de Maio comemora-se em simultâneo o Dia do Autor Português e o Dia da Diversidade Biológica.
Por isso tanto fez como fez. Há portugueses que já se perguntam que dia é quando não se trabalha por ser o Corpo de Deus, assim como há quem já se pergunte o que está a acontecer que justifique ser dia de não trabalho o 10 de Junho ou o 1º de Dezembro, tirando as condecorações e os regimentos de militares e sapadores bombeiros em formatura forçada, como soldadinhos de chumbo ao serviço do mundo oficial engalanado a contra-gosto.
Uma coisa li eu um dia destes num livro do Wenceslau de Moraes: que no Japão antigo se comemorava o aniversário de cada pessoa não no dia em que nascera mas no dia em que mudava o ano. Ora aí está uma ideia possível: concentravam-se todos os feriados no 1º de Janeiro e às badaladas da meia-noite era o bota-fora destas e doutras, porque é de Ano Novo Vida Nova que estamos todos a precisar.