29.6.06

Uma vida, um número

A palavra «só» é uma palavra tão triste como o livro do António Nobre do qual é título. Mas ler, como hoje li, um «só matei três pessoas», pode ser a expressão desculpante num mundo de horror, mas dói. Na contabilidade do que se mata, os genocidas ficam sempre beneficiados. A partir de muitos milhares, já ninguém quer saber. Os grandes números equivalem sempre a zero.

25.6.06

A paixão do futebol

Vinte de dois sujeitos aos pontapés e cabeçadas numa bola desencadeiam furiosas paixões. E no entanto a probabilidade de um tal conjunto conseguir variantes que ainda surpreendam é mínima. É assim o império dos sentidos. Também num casal a hipótese de variar é imemorialmente a mesma. E, no entanto, também aí as emoções fervilham no sangue. Há só três grandes diferenças. No futebol, a coisa é em grupo e só com homens. Além disso, a alegria de uns é a tristeza de outros. Nisso, nos casais, tantas vezes sucede o mesmo.

21.6.06

Na gáspea

Eu vinha na faixa do meio, a cento e vinte, que é o limite legal da velocidade, por causa do medo de tornar a ficar sem carta. De repente, atrás de mim, um daqueles arruaceiros motorizados, a abrir luzes, aos guinões, às buzinadelas. Podia passar-me pela esquerda, mas pelos vistos não lhe apetecia. Devia achar que cento e vinte é velocidade para se andar pela valeta. Como não me joguei logo borda fora, passou-me a grande brida, raivoso, aos coices, a fazer-me sinais com os dedos. A tipos destes, tão declamadamente machões, falta-lhes muita coisa seguramente! Algumas, eles assinalam-nos com os dedos, talvez na esperança, quem sabe. Há muitas formas de pedir.

18.6.06

Pérola

Eu tenho tão poucos amigos, mas há um que é irmão. Num momento grave de aflicção, estava eu a morrer, naquilo que o homem tem de mais sagrado que é o orgulhar-se de viver, cercado da miséria moral alheia dos que vivem pela ambição, peão no jogo sórdido dos que chamam a isso política, a honra em risco, o mundo alheado, ele estendeu-me a mão, sem a qual eu não sobreviveria ao atoleiro. Obrigado Eduardo, e obrigado sobretudo nos teres mostrado, ostra fechada que és de taciturno, a pérola que há ti. Publica pois o teu Camões em Macau.

17.6.06

O Mundo das Sombras

Este sábado achei que «O Mundo das Sombras» não podia morrer famélico. Ainda por cima ele dá conta dos meus trabalhos de investigação nessa área e esses não páram. Por isso, lá fui, paternalmente, tratar dele, até por ser a hora de jantar.

Cuidado minhas senhoras

Vi na imprensa que o Algarve é a região portuguesa onde a taxa de natalidade tem aumentado nos últimos cinco anos. Imaginei que devido ao clima, morno e mediterrânico, despertos os sentidos, os amores fossem ali mais reprodutivos. Pensei que, irrigadas a sangue árabe fossem elas, as do sul, mais férteis que as nortenhas, celtas e maninhas. Veio agora o Presidente da ARS/Algarve e desabou sobre mim o peso da desilusão. Afinal, o aumento do número de bébés deve-se à imigração. Cada vez mais estrangeiras dão à luz por ali. Cuidado pois senhoras do meu país. O problema pode ser a melhoria da capacidade reprodutora dos vossos portugueses. A ser assim, a taxa de mortalidade marital pode começar a subir. De qualquer modo, como isto é um país de gente muito susceptível, deixem-me avisar: olhem que isto é a brincar!

16.6.06

Se vens a Lisboa

A nova lei das rendas vai acabar com os hóspedes. Qualquer dia lá vão também as pensões de curta permanência. É um mundo que desaba. Houve tempos em que os jornais continham discretos anúncios do tipo «Se vens a Lisboa, não andes à toa. Pensão Josefina, águas correntes». Enfim, num Portugal imobiliário de condomínios fechados, ficarão apenas, porque necessárias aos miseráveis que nos limpam o lixo e alombam nas obras, as casas da cama quente, em que se alugam oito horas de sono e se empurra, cama baixo, o parceiro que, abusando, ainda ressona para além da hora.

15.6.06

A «nuance» de Cavaco

Há na linguagem de Cavaco uma subtil «nuance». Nos velhos tempos em que era primeiro-ministro notabilizou-se por um «deixem-me trabalhar». Agora, que está presidente, ao falar da ministra da Educação, que sete mil professores furiosos querem fazer demitir, saiu-se com um «deixem-na trabalhar». Tá visto. Cavaco está patrão. Mas há outra coisa. É que há quem tenha visto naquela frase um grande apoio à contestada ministra. Tudo é possível. Mas se os professores têm razão, então é só deixá-la trabalhar que, mais uns tempos de trabalho, e ela cai por si.

13.6.06

O ser necrológico

A Inês Serra Lopes, directora do jornal «O Independente» pediu-me que escrevesse um breve texto em estilo de auto-retrato para um coluna do seu jornal. Já me habituei, depois de vários anos a rabiscar para jornais, mas esta de meter uma vida em não sei já quantos mil caractereres deixou-me algo embaraçado. E depois, escrever uma biografia era coisa de que eu não me sinto capaz, por ora ter uma excelente opinião, ora uma péssima opinião da minha difícil pessoa e por vezes uma grande falta de paciência para a aturar. Optei, pois, por deixar desde já um epitáfio tipo necrológico, para evitar equívocos aos vindouros que se lembrem de mim. Aqui fica. Não é tudo o que haveria de dizer. Nem fala nos livros que publiquei, nem nos blogs por onde ando, não fala em muita coisa, por uma razão: não me lembrei! É assim a vida, a importância é apenas uma questão de lembrança. Por exemplo a tragédia de ontem fica esquecida por causa da dor de cabeça de há ums horas atrás. Bom, deixando a conversa, aqui fica o que já amareleceu no jornal e, alegria minha, foi lido pelo homem do café aqui ao pé, prova para mim, que ainda há quem leia outra coisa que não os relatos da bola.
«Pedem-me uma biografia e levam com uma necrologia para que os outros sobrevivos, predadores de cadáver, não inventem a lenda do que não foi. A morte é a interrupção do presente e a condenação inexorável de um indivíduo ao seu passado. Estátua de sal, nega-se-lhe o futuro. O tempo é uma ficção. Como o meu pai era mais velho do que o meu avô, o meu filho mais novo, que tem dez anos, é neto de um homem que nasceu há dois séculos. Por isso, cheguei aos 56 com a noção de já ter vivido mais do que haverá para viver. Filho de solicitador, queria ser juiz. Mas ao ter corrido o risco de uma filha em Direito, fiz tudo para o evitar. Em vão. Eis o que mostra quanto a minha felicidade na advocacia é uma ilusão e prova quantos sucessos aparentes escondem fracassos evidentes. No caso, advogando contra uma miúda, perdi. Em suma, não quero ser o que sou nem que haja mais assim. Além disso, nasci em Angola. Não tenho, porém, a nostalgia de África, nem orgulho pelo que vi acontecer à minha terra. Vivi os pavores nocturnos das metralhadoras e das catanas, a fúria raivosa e primitiva. Dizem-me que os cubanos carregaram com o mármore das campas dos meus avós para a sua ilha. Portugal é um gosto adquirido, mas sou mais patriota do que muitos portugueses que se alugariam à Espanha, a troco de uns churros. Herdei a ânsia criadora do meu pai. Fundou um rádio clube, registou-o na frequência dos 7.945 kilociclos por segundo, na banda dos 41 metros. A rádio em onda média, descobri-a já garoto, a frequência modulada, um luxo de adolescente. Gatinhava a mandarem-me calar, para abrirem o microfone: aprendi aí a linguagem do silêncio. O culto do dever e do orgulho revoltoso, herdei-os pela via materna. Compraz-me ser de alguém que aos oitenta e quatro anos acha, sem vacilar, que «isto só vai é à bomba!». Eu apoio, à minha escala, armazenando petardos. Depois é a ideologia, aquilo que a cabeça fabrica e a sociedade molda. O meu horror ao burguês e ao seu mundo do ter nasceu com o existencialismo. A tragédia do homem como ser defectivo, um amputado em busca ansiosa do que lhe falta, lascando-se no perpétuo movimento que é viver, marca o meu dia e prenuncia o meu fim. Por isso, poucos desejaram, como eu, uma família, e nunca a tive. Produto de zangas sucessivas, a minha prole é uma espécie de cissiparidade, como a que estudávamos nas ciências, no tempo em que a quarta classe era a escola primária, o liceu e a universidade. Por tudo isto, não tenho uma biografia nem uma intimidade que deva ser contada. Tal como o Ruben A., eu sou o outro que era eu».
Desculpem a vaidade. Mas é que depois de ler, fico sempre com a ideia de que isto sim, sou eu, visto a frio, como convém a uma necrologia.

11.6.06

A rede celular catacumbística

A partir de hoje, em todas as linhas de toda a rede de Metro, o telemóvel é audível. Subterrâneo embora, toupeira humana escoada entre túneis e galerias, neste mais depressa e mais rápido demencial em que nos tornámos, o homem, atravancada a superfície da cidade, onde já só se anda devagar, corre-corre pelas suas entranhas, saído, atrasado, da linha azul, perdido, zaranza, na amarela, perguntando, tarata, pela linha verde. Faltava só ser encontrável, pelo chefe, pelo cliente, pela família, pelos amigos. Soterrado, embora, inumado vivo, entalado entre corpos e cheiros, sujeito a um esticão na carteira e a um apalpão nas partes, o homem de hoje, lisboeta e contemporâneo, não tem desculpa para não dizer, conformado, que «está lá», nem que seja para responder ao irónico «por onde andas tu que não te vejo?».

10.6.06

Os deputados baldistas

Ora aí está, como o Governo resolveu o absentismo escolar, dos professores. Vem na imprensa desta manhã que os professores mais faltosos terão mais trabalho depois das aulas. Em suma, e para explicar de modo breve, ficam de castigo a fazerem os TPC's. Ora esta solução mirífica podia ser aplicada ao problema dos deputados baldistas. Depois de o presidente encerrar os trabalhos, ficavam ali, no apoio ao estudo parlamentar, nas carteiras de São Bento, a escreverem cem vezes no caderninho pautado: proposta n.º 18 votamos a favor, projecto nº. 27 votamos contra, proposta n.º 15 abstemo-nos, proposta n.º 18 votamos a favor, projecto nº. 27 votamos contra, proposta n.º 15 abstemo-nos, proposta n.º 18 votamos a favor, projecto nº. 27 votamos contra, proposta n.º 15 abstemo-nos, proposta n.º 18 votamos a favor, projecto nº. 27 votamos contra, proposta n.º 15 abstemo-nos....

9.6.06

O mundo a seus pés

É notícia que um futebolista revoltado com uma lesão tenha pontapeado violentamente uma cadeira. Não sei onde está a novidade. De um homem que é treinado para usar apenas os pés, espera-se que use a cabeça? O que é ridículo é que adultos, responsáveis, pessoas para quem as preocupações sobre o que se passa no mundo que os cerca deviam ser outras, achem que isto é uma notícia e daquelas que vale a pena saber e comentar. Enfim! Com tudo isto esquecia-me de uma coisa crucial! Segundo a oficial agência de Lusa, o pontapé foi dado com o pé direito. O que, convenha-se, faz logo toda a diferença...

7.6.06

A PIDE e a Madeira

«Temos de acabar com essa cultura própria da PIDE de perseguir, vigiar e bufar sobre outros». Diz Alberto João Jardim. Sem comentários. Ah! É a propósito da Lei sobre as Incompatibilidades e sua extensão aos políticos da Madeira esquecia-me de dizer.

6.6.06

666

Hoje é o dia 06.06.06, o dia da Besta do Apocalipse. Digo isto ao sair de casa para mais um fatídico dia. Lembro-me que em tempos o Paulo Portas ganhou o Congresso do CDS-PP com 666 votos. Ninguém reparou. Pode ser que hoje também não.

5.6.06

O Governo e os seus cães

Um estudo que o jornal «Público» hoje revelou mostra que «enquanto os consumidores saldam as dívidas em média 42,5 dias depois, as empresas fazem-no em 53,9 dias e o Estado prolonga o pagamento em 69,8 dias». Perante um Estado tão relapso a pagar os cães que deve, um destes dias, os espectadores pasmados ainda verão em suas casas o senhor primeiro ministro em pose de Estado, a debitar um discurso sobre a modernidade, e por detrás, indesfarçável, o cobrador de fraque. Já estivemos mais longe. É só o primeiro arriscar, vai tudo à compita. Um desses dias o país acorda com o Terreiro do Paço arrestado.

3.6.06

Lê e passa

Naquela cadeia ininterrupta de frases que circulam pela blogoesfera, em encaminhamentos reencaminhados, há de facto algumas que são uma explosão de ironia certeira, como esta: «Os políticos, assim como as fraldas, devem ser trocados constantemente. E sempre pelo mesmo motivo!». Como se dizia nos tempos do antigamente quanto às tarjetas clandestinas, lê e passa.

2.6.06

A feira do livra-te

Fui àquela insuportável tristeza que é a Feira do Livro do Porto. Uma tenda gigante, em lona, como nas festas dos casamentos, e dentro dela uns pavilhões feiosos em contraplacado, a maioria sem um toque de graça ou a alegria de uma cor. Lá dentro, esfalfados por um calor insuportável passavam, como sonâmbulos, sem nexo nem destino, uns quantos poucos transeuntes. Transeuntes no sentido etimológico do termo, pois nem leitores se poderia chamar a muitos deles que nem num livro pegavam, nem que fosse para lhe tomar o peso ou ver ao menos se tinha bonecos. A de Lisboa, sendo feira, ao menos é ao ar livre. No mais, é a mesma monotonia, a mesma solidão, o mesmo ar de cidade fantasma. Num país de iletrados tele-espectadores editam-se trinta livros por dia, mas a feira está às moscas. Houve anos em que era o lugar dos despejos do espólio, das sobras, dos restos, do que hoje pomposamente se chama do livro manuseado, forma de as editores de livrarem de monos. Agora já nem isso. Um ar de aflicção desanimada estampa-se no rosto cansado dos vendedores. Resistem a Figueirinhas, a Lello, a Guimarães e a Minerva, a Sociedade de Difusão Bíblica e a barraca dos churros. Até as criancinhas a choramingar cansaço e a pedincharem algodão doce me parecem chatear este ano com menos convicção.