31.8.08

Um café para seis

A Lisboa pelintra, a Lisboa dos parvenus, a Lisboa do vale mais parecer tem os seus cronistas e invade a melhor literatura de costumes. Encontramo-la no Fialho de Almeida e no Eça. Toda ela está no Gervásio Lobato e no Armando Ferreira. No Leitão de Barros. É uma Lisboa que se alimenta a açúcar em vez de bife, por se ter esgotado o cartão de crédito, é a Lisboa das imposturices de personalidade em prol de um bom engate, a Lisboa de uma passagem pela cama na noite de sexta-feira que segunda-feira já acabou ó tu como é que disseste que te chamavas. Estamos já na segunda-geração e na terceira geração da família Piranga e da sua trupe.
E depois há os literatos decadentes, unidos em gangs, felinos de dentuça afiada em luta pelo território de uma consagração. E há as meninas com um palminho de cara e os meninos com um palminho de corpo, vindos do anonimato, em busca da glória e da fama na arte, na moda ou na TV, entre as estonteantes luzes do estrelato decadente, libidinoso velho e predador. A Lisboa ociosa, a estafar o resto do que ainda sobra da herança dos tios e do subsídio que há-de vir, a Lisboa chula sustentada, a Lisboa fadista fina, enfastiada de tédio e enojada do próprio brasão, fazendo de proletária e fingindo-se plebeia, em ré menor, a do fado corrido na viela do expediente, do calote pé descalço e da falperra afidalgada.
Sob toda esta Lisboa, há a Lisboa marçana, da mercearia de bairro à espera da misericórdia da ASAE que lhe dê o golpe da eutanásia, a Lisboa funcionária, a que sobreviveu ao quadro de adidos e à pré-reforma e ao quadro de excedentes e aos ministros novos cheios de velhas ideias inovadoras. A Lisboa dos africanos e a dos eslavos e a dos vindos dos Brasis, que limpa e constrói e sorri e serve numa Lisboa suja, a destruir-se e que perdeu a capacidade de rir.
Lembrei-me disto tudo esta manhã quando, a rebentar de dores de cabeça, me assaltava, obsessivamente como os latejos de uma nojenta enxaqueca, a frase explêndida do António Ferro - ai! ó chuis do politicamente correcto, flics do que se pode dizer, quem eu fui citar! - a frase explêndida do António Ferro, dizia, na sua crónica sobre o café Martinho, o da Arcada, o do Pessoa, esse «onde o Ponce Leão, filho, portanto o Kronprinz, pede, de mistura com a morte dos empresários que não lhe aceitam as peças, um café para seis quando não é para oito...».
É a Lisboa eterna, a que disfarça em dieta o não haver já sequer para a paparoca, a Lisboa que pouco trabuca e que nada manduca, a Lisboa que dá ganas de vomitar. E vomitei mesmo, convicta e revoltadamente.

30.8.08

Poesia higiénica

No número de Janeiro/Junho de 2002 da revista Colóquio, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, vem, a propósito de Tomaz de Figueiredo – e em oneroso fac-simile – um chamado poema que ele dedicou ao último Presidente do Conselho de Ministros antes do 25 de Abril.
Uns excertos bastam para se aquilatar do seu fino recorte literário e subtileza poética: «apoiaste o reviralho, ó meu cara de trabalho, aumentaste a confusão”, “Marcelo, mar de marmelo, marmelada de chinelo”; “Marcelo Alves José, lava a cara no bidé, onde hás-de lavá-la tu”; “depois da posta mamada, pão as mamas da criada [?], vai servir o comunismo, Marcelo José cinismo».
Um naco destes, só mesmo em extra-texto, para lhe dar realce, pois claro!
Só que, se me permitem, há uma pequena falha tipográfica. É que ele há «poemas» que ficariam melhor se impressos em papel absorvente e picotado. É o caso deste.
Arte e poesia sim, mas no caso para estarem sempre mas sempre ao serviço das necessidades essenciais do povo português! E por isso o papel higiénico ajuda.

29.8.08

O Fisco e as capelas

Na Igreja Católica a indulgência é a remissão dos pecados em contrapartida de - .
Ora o problema está precisamente no de.
Há indulgências plenárias perpétuas e que se aplicam inclusivamente a mortos, como se pode ver aqui. Morto no Purgatório pode ser resgatado para o Céu, se os vivos aceitarem o de.
Ora houve tempo em que o frade Johann Tetzel foi recrutado para viajar através dos territórios episcopais do arcebispo Alberto de Mogúncia, promovendo e vendendo indulgências com o objetivo de financiar as reformas da Basílica de São Pedro, em Roma. Rebelando-se contra isto Martinho Lutero abriu na Fé o fosso do Protestantismo. Foi com as 95 teses que afixou na Igreja Castelo de Winterberg no dia 1 de Outubro de 1517.
O negócio da troca do perdão das almas pecadoras por dinheiro dos outros pecadores mostrou uma Igreja mercantilizada, a salvação confundida com a pecúnia, os 30 dinheiros feitos prática litúrgica e fonte de financiamento.
Provocador e arguto, Lutero perguntava então, na sua tese 86: «Por que razão o Papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos ricos mais crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?».
Tempos idos, esses, em que a mística se impunha à conta de talha dourada e outras pompas. Hoje, em Portugal, a Nação que tem as chagas de Cristo na bandeira e Nossa Senhora de Fátima como padroeira: «O fisco tem à venda imóveis e viaturas a preços de saldo. Há até uma capela, na Nossa Senhora das Dores, em Valpaços, que vai a leilão com um preço base de nove euros e 40 cêntimos». Vem na TSF.
Os ímpios da Fazenda não perdoam. Não há indulgências plenárias para a Administração Fiscal, nem excomunhão da Santa Sé que os atrapalhe. Hereges!

19.8.08

A noite da indiferença

Uma pessoa entra na urgência do Hospital Amadora Sintra pelas 18:00, para ali transportada pelo INEM, o serviço de emergência médica. Queixa-se de uma dor no peito e de um agonia na zona do coração. Seis horas depois é, enfim, atendida por um médico, para uma observação que não chega a durar um minuto. Segue para recolha de sangue e um electrocardiograma. Feito este, diagnosticam, de súbito, um enfarte em curso há horas. A lentidão transforma-se agora em pressa, o desinteresse em preocupação: surgem, das entranhas do corredor, um monitor cardíaco, um disfribilhador, oxigénio, soro.
Essa pessoa está internada nos cuidados intensivos. Tem 85 anos de idade.
Seis horas depois de ter entrado na urgência hospitalar, a urgência viu que, afinal, era urgente.
Podia ser a história de toda a gente que tem a desgraça de nascer em Portugal e de acreditar nas reformas do Serviço Nacional de Saúde. No caso é a minha mãe.
Quando pelas onze e meia fui saber o que se passava, uma feroz funcionária atendia aos rompantes uma jovem mãe, negra, o filhito ao colo assustado sem saber que para além do medo que sentia, deveria ter medo, sim, mas do lugar onde estava. No corredor dois médicos conversavam tranquilos, a longa noite da indiferença prosseguia o seu ritmo.

9.8.08

O pecado da vaidade

Vim no comboio a ler, porque é isso que os comboios têm de bom o permitirem ler, um livro auto-biográfico do Serafim Ferreira, editor. É um inventário das grandezas e misérias dos que arriscaram o tempo, o dinheiro e a paciência no mercado dos livros. Quase nenhumas das histórias acaba bem, mas algumas proprocionam momenos irónicos. Uma é a do tipógrafo Manuel Rodrigues que em 1927 criou a Editorial Minerva, sob cuja chancela saíu o Borda de Água, e tantos outros.
Mas dizia eu, por falar em ironia, que o Serafim Ferreira conta, a propósito da Minerva, que esta editora: «publicou alguns autores portugueses e de todos eles o mais lembrado deve ser hoje o livro de estreia literária de José Saramago que foi A Terra do Pecado, saído em mil novecentos e quarenta e sete e o autor de Levantado do Chão dele se arrependera, porque o retirou da sua bibliografia e só lá o encaixou passado muito tempo para assim poder justificar as celebrações de cinquenta anos de actividade literária». Pois é.
É de rir! Ou de chorar?

8.8.08

Parece um cartoon, mas é um cartão

Finalmente a insistência dos que se preocupam comigo venceu: decidi-me a ter um cartão do Serviço Nacional de Saúde.
Lá fui, pela manhã, ao centro de saúde da minha residência. Um sorriso de amabillidade esperava-me. Só que tinha-me esquecido da prova de residência. O cartão de eleitor não chegava. Um recibo comprovativo de que pagava eletricidade, sim. Fui buscar. Há dias em que um homem tem toda a paciência do mundo quanto às suas insuficiências de identificação. Voltei para encontrar o mesmo sorriso e muita eficiência. Num ápice estavam os meus dados introduzidos no sistema. Depois perguntaram pelo meu regime de segurança social. Ora eu acho que não tenho regime nenhum. Mostrei, a medo, o cartão de beneficiário da Caixa de Previdência dos Advogados. Não servia. «Mas deixe que fica em branco». Concordei. Afinal nesse campo estava, de facto, em branco. E a amabilidade dera em compreensão e eu não queria atrapalhar por uma questão de regime.
Funcionou, então, rápida, a impressora. «Aqui tem, é o provisório, tem de andar sempre com ele. Depois virá o definitivo». «Ah!» respondi, ao olhar para uma folha em A4 que era difícil que me coubesse na carteira. «E o outro, quando vem?», arrisquei. «O definitivo? Cerca de três anos».
«Três meses...», tentei, inseguro, corrigir. «Não, não. Três anos!».
Foi esta sexta-feira, em Lisboa.
O cartão definitivo, note-se, é um pedaço de plástico, onde estão os dados que aquele computador tinha aceite e impresso em papel. Leva três anos a imprimir!
Dado que a legislatura vai durar menos do que o cartão, não se poderá fechar, entretanto, o Ministério da Saúde, ou lá como é que se chama, ou para obras ou para nova gerência, ou criar um Secretário de Estado para a Plastificação?

1.8.08

Pois olhem, à pata!

O caso de José Sá Fernandes é a última das desilusões para os últimos dos inocentes.
Primeiro, vimo-lo paladino de causas cívicas. Muitos julgaram-no o advogado dos sem-abrigo na política, o defensor impoluto contra o meio ambiente poluído, o combatente vermelho pelo que é verde, em suma, o cavaleiro andante da moralidade pública.
Depois, vimo-lo político e as pessoas desconfiaram se a defesa de tudo aquilo, do verde ao vermelho, não era o ataque a um lugar, uma conduta de amarelo.
Durante pouco tempo durou a dúvida.
José Sá Fernandes começou iracundo na barricada do Bloco de Esquerda, num fósforo ei-lo em intimidades suaves com o partido do Governo, o do menino de ouro.
No princípio José Sá Fernandes falava muito, alto e grosso; agora pia muito fininho, se é que pia.
Para os poucos crentes nos partidos burgueses, percam definitivamente as ilusões; o radicalismo burguês de fachada socialista dá nisto: o meu reino por um cavalo, para já de preferência a mula do poder.
Só que há um senão futuro: é que ajoujada com tantos arrivistas, um dia a besta alimária que a palha da Fazenda Nacional alimenta, ajoelha de exangue. Nesse dia, tudo como dante: os apeados mudam de montada, à falta de corcel, vai-se de burro, que à pata é que ninguém quer.