21.5.08

Venha enterrar-se em Lisboa

Já dei conta que vejo mal como se diz «ao pé» e por isso passei a usar óculos, culpando o computador pelo cansaço da vista e a mania de escrever por ter de usar computador. Agora começo a concluir que vejo mal ao longe.
Vinha eu a entrar em Lisboa, vindo de sul, venço a ponte que já foi do antes 25 de Abril, coitada dela, e ao terminar o tabuleiro, o casario degradado à vista, vejo do lado esquerdo uma placa em azul. Anúncio publicitário, tá visto. Mas a quê? Propagandeando o quê?
Aquele azul, pálido, celeste, turquesa, hipnotizou-me. Tentei concentrar-me, um olho na estrada, outro nas letras, como se no consultório do optometrista. Sim, começava com um jiboiante «S», e a seguir um «E». E a seguir» Um «P» ou um «R»?
O automóvel seguia ronceiro, a fila à frente obrigou a abrandar, mais tempo para decifrar o enigma, a frase a compor-se, hesitante, tremelicante.
De repente li tudo. Estava eu a entrar em Lisboa: «Servilusa, agência funerária»!!
Dizia eu um anúncio ou abrenúncio? Apre! Será um patrocínio da Prevenção Rodoviária Portuguesa?

20.5.08

De língua de fora

Ela escreve ainda «mãi» e «pae», tal como se lê, exactamente como se escrevia quando aprendeu a escrever, numa remota aldeia alentejana.
De há muito que a língua normativa, imposta por doutoral decreto, resumida nos implacáveis prontuários e nas ampliadas gramáticas, policiada pelos revisores de provas e objecto de pugilato polémico entre leitores puristas do verbo e escritores desleixados na prosa, lhe retirou a razão.
Mas quando falo dela não digo que é a minha «mãe», mas, de facto, a minha «mãi». E os que perguntam carinhosamente indagam «como vai a sua mãizinha», tal qual com o «i» que marca a fonética que retine no palato como o trinar de uma campainha.
Chama-se Maria Ernestina.
Agora, tenho que consultar o Diário da República para ver se não lhe mudaram o nome. Um destes dias o Ministério das Finanças regula a Lei do Acordo Ortográfico, prevendo umas coimas a quem não o cumprir. O Ministério de Pinto Ribeiro ficará incumbido da cobrança, a ASAE policiará os livros com as vírgulas fora do lugar. Agentes encapuçados, de G3 nas unhas, entram livrarias adentro, num «mãos ao ar! e ninguém toca nas estantes» que é tudo para apreender, se é que apreender ainda se escreve com dois «ee»'s, pois já nem sei e já é tarde para saber.

17.5.08

O negócio da fome

Sabemos que há miséria, há dificuldades económicas, gente com fome. As notícias estão cheias disso, a oposição reclama, o Governo disfarça.
Mas há a exploração comercial do fantasma da fome, o aproveitamento interesseiro da penúria, o miserável negócio da miséria.
Esta noite estava meio distraído, com a televisão em frente, e assisto a uma notícia segundo a qual havia dificuldades económicas crescentes e por isso havia pessoas que começavam a fazer pão em casa.
O pão é, quase por simbologia bíblica, a ideia do alimento em si, o pão para a boca, o pão nosso de cada dia, o comer o pão que o diabo amassou.
Idiota teleespectador condoí-me: a ideia de já nem para pão haver dinheiro moeu-me a consciência. Mas foram só uns segundos: era, afinal, um anúncio encapotado a uma máquina de fazer pão, um electro-doméstico novo, à venda no mercado.
A reportagem mostrava o vendedor pressuroso, a doméstica feliz, o padeiro receoso. Balanço final: compre, porque sai mais barato e o pão é mais fofinho!
Tudo isto na RTP, a estação do serviço público.
Mas já se perdeu de vez a vergonha, ou pensarão que somos todos atrasados mentais, uns fofinhos nas mãos da negociata pseudo-noticiosa?

16.5.08

Assim NAM vale!

Um dos problemas da velhice é a perda de memória. Um dos sintomas da esperteza é a memória selectiva! Uma das vantagens dos que já cá andam há muito é o não se esquecerem. Uma coisa boa para memória é o fósforo. Tem é um problema. Um descuido e fica tudo em cinzas. É o risco dos que brincam com o fogo...

A Feira da Ladra

Para muita gente ainda era a hipótese de comprar o seu livrito mais barato, economizando uns tostões; para algumas editoras era a eventualidade de escoarem alguns dos monos, a saldos, compensando os seus prejuízos; para muitos autores era a oportunidade de uma tarde ao sol, à espera de leitores, um amigo ou dois a ladeá-los, naquele velório da sua defunta obra, por vezes invendável, mesmo quando excelente; para os rapaces coleccionadores de primeiras edições autografadas, o investimento de futuro, para os mirones o cumprimentarem gente ilustre.
Era a Feira do Livro, mercado ao ar livre, o livro do dia com desconto, a enciclopédia a crédito, o compre dois e pague um, enfim, a Literatura em montra, popular e barateira, espécie de trottoir em que os anónimos se cruzavam, desconfiados, com a reluzente livraria, esta a fazer olhinhos sedutores, a prometer gozos e sonhos e fábulas de ilusão ao alcance da mão.
Agora paira a ameaça de que pode nem haver Feira, por causa de uma grande patroa, que quer acabar com aquelas modestas casinhas de meia-porta.
Não faz mal! Sugiro que, para a troca, se faça uma Feira de Autores, daqueles que, recebendo dez dos cem por cento que custa o livro a quem o compra, tanta vez ficam, com o Tejo à vista, encerrada a Feira, a ver navios, porque, baixados os taipais dos pavilhões, muitos feirantes ferram o calote, porque «isto está mau, ninguém lê e nada se vende, vamos lá a ver se agora pelo Natal a coisa melhora...».
Feira de Autores, pois! E como local sugiro Santa Clara, ali mesmo, entre o adelo e o espólio, a velharia e o sabe-se lá de onde, a Feira da Ladra, que tem a glória vã do o Panteão à vista, e espraiando-se em realidade alfacinha, o Largo do Outeirinho da Amendoeira, as Escadinhas do Arco de Dona Rosa e sobretudo a Travessa do Paraíso!

14.5.08

A triste história da burguesia

Era uma vez uns filhos de burgueses que na idade da adolescência resolveram enfrentar os antiquados papás e a lei e a ordem que imperava à mesa lá de casa. Lei e Ordem, diga-se, que eram a garantia do negócio rendoso ou do emprego tranquilo do papá, da domesticidade submissa e beata da mamã, da castidade expectante da mana, à espera de um bom partido que a levasse dali, e das heranças que, mortos os velhos, lhes dariam, enfim, divididas em grande zanga, um começo de vida sem as sovinices mesquinhas ou outras privações que se contavam dos avós, sustentados a côdea ratada, a sardinha moída, a pobreza envergonhada alumiada a pavio de azeite.
Ora por essa altura esses filhos de burgueses, não sabendo que eram burgueses ou para fingir que não eram burgueses resolveram travestir-se de trabalhadores.
Muitos deles não trabalhavam nada, nem sequer nos livros, salvo pelo fim do ano para que por causa do «chumbo» não fosse tirada a mesada; mas porque as calças de ganga são tão ganga como as gangas dos fatos-macaco do proletariado, bastava só a camisola esbeiçada e uns sapatos cambos e, pelo menos, máscara já havia e, se não eram trabalhadores, pareciam trabalhadores. Trabalhadores no desemprego, claro, porque com o capital não se colabora!
Foi assim que esses burgueses filhos de burgueses se atiraram à sociedade burguesa que os sustentava e aturava. E lá vieram os Maio's de 68, como forma de fugir à polícia e pedir o impossível como o máximo da ideologia revolucionária.
Queimaram-se em noites de interminável discussão sobre as variantes dos «ismos», às olheiras do acordar tarde juntava-se o medo de passar por reaccionário.
A seu lado, o proletariado real, esse comia o pão que o diabo amassou, e levava no lombo a sério, quando a repressão se abatia.
Toda uma geração formou-se assim e anda por aí: burgueses, filhos de burgueses, ei-los burgueses. Só que com uma diferença.
Na idade de fazerem filhos, educaram-nos na liberdade de que a vida é bela e há que curtir, porque para atraso e pobreza já bastavam os remediados avós.
E é por isso que está aí, a tomar conta aos poucos das rédeas da sociedade uma geração que tem como personalidade o hedonismo, como moral a ambição, como método o individualismo, como critério o argentário. Olham para os pais e vêm como é possível ter mentido tanto.
São, coitados, todos uns tristes doutores de nada para coisa nenhuma, à procura de um país que não há, de empregos que não existem, todos herdeiros daqueles velhos burgueses, pais de burgueses e de burgueses avós, de cujas heranças, feita de aforrar de dia e amealhar à noite, se fez o que ainda há. Um dia, a ter sobrado algum, talvez isso lhes valha.
Era uma vez um mundo em que se dobravam os punhos e os colarinhos das camisas, se subiam e desciam as bainhas das saias, se ia para as termas só quando se estava doente e para a pensão quando calhava ir de férias. Um mundo em que se festejava o primeiro carro, a primeira telefonia, o ir jantar fora. Um mundo feito de abdicação, de sujeição, em que imperava o medo perante Vossa Excelência e a crença no à consideração superior.
O que fizemos nós de nós, para tudo isto ter um sabor amargo de ridículo e pastoso de verdadeiro? Como tudo isto passou do cocktail-Molotov para o cocktail-party!

13.5.08

A luta pela memória

Com o presente aprisionado, trava-se actualmente em Portugal um combate pelo que resta no país, que é a memória colectiva.
Falsifica-se a História, há avençados para a reescrever, omite-se, mente-se. Todas as comemorações servem, voltámos às romagens, aos encómios, aos assassínios de carácter.
Um dia as gerações futuras far-nos-ão pagar por isto tudo.
Neste ambiente, não é de estranhar que uma tentativa de lembrar o passado, dando-lhe sítio e voz, desencadeie uma luta entre listas, grupos e tendências. É o combate corpo a corpo pela posse das consciências. É lamentável e um tristíssimo espectáculo, indigno do que foi a resistência.

O Petromax

Reparei que o primeiro-ministro voltou à Venezuela por causa do petróleo e que o Dr. Mário Soares também já tinha tratado do petróleo com a Venezuela.
Antigamente havia os que andavam com um burro e um tambor, de rua em rua, a aviarem aos decilitros o precioso combustível. Ganhavam uns patacos e chamavam-se os pitrolinos.
Como está tudo tão melhor neste querido Portugal e sobretudo mais sofisticado.

Os sinos da minha aldeia

A minha aldeia tem árvores que não dão fruto e ruas que se cruzam em perpendicular. A rua onde eu moro não é uma perpendicular, é uma espécie de cotovelo curto e não tem árvores mas tem uma frutaria, e tem em frente dela um jardim grande, com não muitas mas algumas árvores, muitos verdes e poucas flores.
O dono desse jardim, que fica em frente à janela de onde eu vejo a rua e tudo o que nela há, não deve gostar de flores, porque escondeu umas pálidas roseiras no meio de um matagal onde está uma estátua de homenagem a um pila gorda, tristonha e pendente.
Por detrás da minha rua, na minha aldeia, há uma igreja grande, com painéis do senhor Almada Negreiros, que já morreu e nunca viveu na minha rua.
Hoje pela manhã repicavam, alegres, os sinos, num tlim sincopado e reiterado e num tlão final em oito vezes.
Daqui a um pouco a minha aldeia está infestada de automóveis e de empregados, funcionários e outros iguais e os seus parecidos, despejados tantos na paragem do autocarro. Inundam então os cafés e outros comes-em-pé, alimentados, ao desjejum, a farinha frita, amido, muito açúcar, regado tudo a café porque há que resistir a mais um dia. Por volta dos cinquenta anos, começam a ter achaques, flatos e muitas dores no peito e na barriga.
Na minha aldeia, naquela igreja, onde repicam os sinos, há uma capela mortuária. Não sei se é só para os que moram aqui. Se for, os outros haverão de ir morrer longe: vêm aqui só para se matarem.

10.5.08

Um país sem fins nem meios

Ia a entrar em casa, vindo do supermercado, quando vi, na nesga da porta da papelaria, a manchete do «Diário de Notícias», a dizer qualquer coisa como que Portugal não tem meios para expulsar os emigrantes ilegais. É um apelo descarado à invasão geral! Mas já nem é isso que me irrita neste dia em que acordei irritado. É que esta cantata da falta de meios há um momento em que, desculpem o desabafo, já mete nojo.
Tornou-se no alibi que alimenta oposições e sustenta Governos. Faz parte do fadinho nacional, justifica a preguiça, legitima a falta de espírito empreendor, dá a benção à inércia, a extrema unção à falência.
E no entanto não é que não haja carência financeira, desgoverno, roubalheira no que resta e um grupo de idiotas a aguentarem, pela noite fora, o que ainda está de pé. Sabemos isso. Há departamentos que estoiram em turismo pseudo-formativo e congregativo o que podiam aplicar a cumprir as suas missões. A globalização tornou-se uma mina para os que fazem a reunião preparatória do congresso inter-departamental em Helsínquia, o dito congresso na Riviera e as reuniões de «follow up» um pouco por todo o lado onde seja agradável ir arejar. Depois, mudam os directores-gerais, porque cairam os ministros e os relatórios das conclusões que já vinham preparadas, apodrecem às resmas, encarquilhando-se nas estantes, entre mil outros papéis inúteis. De quando em vez faz-se um livro com sólida encadernação que à última da hora é mandado recolher e lá se vai o gasto pelo qual ninguém responde.
Portugal não tem meios para expulsar emigrantes ilegais! Pois venham eles que precisamos mudar de povo! É que um dia destes, ao entrar em casa a manchete que me espera é «Portugal não tem meios para ser Portugal».

8.5.08

A remoção dos sobejos

Da janela de minha casa vejo as janelas que me circundam, o prédio em arquitectura chamada contemporânea ali ao canto, com evidentes metais e muitos vidros, que é quase uma janela feita casa, a correnteza esboroada aqui em frente, que parece uma serpente adormecida que se diria um armazém, e que tem a ver com o Hospital além e onde, a horas incertas da noite, se acendem frios néons de um cinzento morto, como se fossem almas esquecidas de doentes que tivessem ido embora desta vida.
Da janela da minha casa vejo-os também, mais durante o dia, os passageiros dos autocarros, galgos mecânicos que batem, ao passar, na caixa do colector, fazendo um tac-tac que pela noite me embala e me adormece, e neles a senhora gorda com as mãos cruzadas no colo da indiferença de mais não ter, o braço atrevido descendo ombro abaixo da rapariga contente por ter naquele namorado o seu mais que tudo, o leitor de qualquer jornal, tanto faz porque são à borla, os que dormem por cansaço e acordam com fastio, os que vão de pé, os que gostariam de um lugar sentado.
Pelas quatro da madrugada, entram poucas imagens, a luz timorata dos automóveis que aceleram avenida fora, a ideia de que aquele faz uma noitada e amanhã entra às nove, a suspeita de que ali se esqueceram de desligar o candeeiro. É então a hora da passarada. Cantam como se a um Deus da Alegria, uma hossana de gorgeios pelo nascer de mais um dia. Daqui a pouco chega o carro do lixo e com ele a remoção dos sobejos da vida que se viveu.

2.5.08

Blogar mata!

Já cá faltava: «A morte de alguns autores de blogues profissionais muito populares nos EUA por ataque cardíaco está a preocupar a comunidade bloguer norte-americana, que acredita que a necessidade de actualizar constantemente estas páginas poderá estar a afectar a sua saúde. O tema começou a ser discutido quando dois autores de blogues relacionados com as tecnologias, actividade que exerciam a nível profissional, faleceram vítimas de ataque de coração».
Num mundo de anormais que se esfalfam a comer lixo de ingestão rápida e que atulham o bandulho enganando a fome ao juntar-lhe bebidas gaseificadas, que depois ficam como zombies catalépticos horas a fio, jiboiando diante do pequeno écran, a sublimar o seu raquitismo diante de mil canais todos iguais com os seus heróis decadentes e cambados, e heroínas avantajadas em silicone, palonços boçais que a malta goza pela sua estupidez bacoca e ganância concursal, mais as matanças sem nexo, a faca, o sangue, as balas e o encéfalo esborrachado mesmo ali contra o plasma da TV, fora o futebol dia sim dia e sim e as novelas todas as noites, os sentimentos enfim embotados, que nenhuma violência já abala, nenhuma mortandade fere, nenhum ridículo atormenta, só faltavam, digo, vindas desses tais, estas preocupações sanitárias quanto ao blogar.
Blogar mata! E eu a pensar que era por causa de provocar cancro nos dedos de tanto teclar! E eu a julgar que era de doença na espinal medula de tanto lombo curvado para chegar com os olhos à janelinha do chat! E eu a imaginar que blogar matava de tédio, que um tipo se não ficasse morto de riso, matava-se a treplicar aos que tinham replicado aos que tinham comentado os primeiros que enfrentaram os comentadores do post até à exaustão final do desisto que ninguém se entende e isto a continuar assim ou passo a moderar a coisa, ou bloqueio isto de vez, porque eu não admito, ouviram?
Não! Blogar mata pelo coração!
No tabaco começou assim.
Qualquer dia estamos todos na sala de chuto a seringar-nos uns aos outros, numa trip pelo ciber-espaço, até que, de clique em clique, de link em link, se ouça, das profundezas dos céus, vinda do princípio de todo o ser, ofuscada por uma irradiante luz, uma voz cava e profunda a dizer: abençoado sejas tu, irmão, agá tê tê pê barra barra. E numa litania coral, em uníssono, recitaremos: dot com, Senhor!

1.5.08

O 1º de Maio é vermelho!

Originariamente a ideia de haver um «Dia do Trabalhador» assentava na ideia de que havia os que trabalhavam e os que viviam à conta do trabalho dos outros.
No 1º de Maio as ruas enchiam-se com o enorme exército daqueles, para vergonha destes, que se trancavam em casa ou nos clubes, deixando a cidade entregue às insolentes gangas que comemoravam a revolta com assomos de fraternal confraternização.
Hoje, com o Estado social à mistura e a sofisticação da economia a baralhar, há quem já não se consiga entender no meio da Babel sociológica em que vivemos.
Claro que ainda há o velho operariado, o paradigma duro do metalúrgico, do mineiro, o ferroviário, restos da Revolução Industrial, a pedreiragem e os moços de servente, ao lado dos distribuidores de pizzas, operadores de tele-marketing e agentes da Bolsa de Valores e dos mercados on line. Uns e outros recebem ordens, reconhecem em algum outro um chefe, um capataz, poucos sabem quem é verdadeiramente o patrão. A sociedade contemporânea criou um exército de dependentes que não sabem bem de quem dependem. Quando alguém responsabilizar alguém, são todos consultadores ou procuradores.
Depois, há a colmeia dos desempregados, cujo pagador é a Segurança Social, os que conjugam o biscate não declarado com o estarem cronicamente sem emprego e desse rotativismo espertalhão fazem modo de vida. Trabalhadores de nada, engrossam as estatísticas que envergonham governos e mostram como o capitalismo explora a mais valia e gera a sub-ocupação da mão de obra.
Além disso, temos os que estudam para serem chefes e acabam por se tornarem índios, licenciados em caixas registadoras, mestrados para andarem a vender ao balcão, sonhos de patrão, pesadelos de amanuenses.
Há finalmente, todos os que para aqui migraram, os que fazem o trabalho em que os nossos não pegam, os brasileiros que alimentam a restauração, os eslavos que seguram na construção civil, e mais as que as fazem madrugadas nas limpezas, sujando-se na nossa escória, ou noitadas trabalhando no comércio do sexo, o corpo em aluguer com opção de compra.
Hoje é primeiro de Maio. Estão muitos na rua, pelo trabalho contra o capital, outros em casa, a passar roupa a ferro porque amanhã é dia de trabalho, a dormir porque ao menos hoje não há que amanhecer, ou porque não, a terem, enfim, um momento de amor, agarrados ao seu parceiro ou a um aparelho de televisão.