8.5.08

A remoção dos sobejos

Da janela de minha casa vejo as janelas que me circundam, o prédio em arquitectura chamada contemporânea ali ao canto, com evidentes metais e muitos vidros, que é quase uma janela feita casa, a correnteza esboroada aqui em frente, que parece uma serpente adormecida que se diria um armazém, e que tem a ver com o Hospital além e onde, a horas incertas da noite, se acendem frios néons de um cinzento morto, como se fossem almas esquecidas de doentes que tivessem ido embora desta vida.
Da janela da minha casa vejo-os também, mais durante o dia, os passageiros dos autocarros, galgos mecânicos que batem, ao passar, na caixa do colector, fazendo um tac-tac que pela noite me embala e me adormece, e neles a senhora gorda com as mãos cruzadas no colo da indiferença de mais não ter, o braço atrevido descendo ombro abaixo da rapariga contente por ter naquele namorado o seu mais que tudo, o leitor de qualquer jornal, tanto faz porque são à borla, os que dormem por cansaço e acordam com fastio, os que vão de pé, os que gostariam de um lugar sentado.
Pelas quatro da madrugada, entram poucas imagens, a luz timorata dos automóveis que aceleram avenida fora, a ideia de que aquele faz uma noitada e amanhã entra às nove, a suspeita de que ali se esqueceram de desligar o candeeiro. É então a hora da passarada. Cantam como se a um Deus da Alegria, uma hossana de gorgeios pelo nascer de mais um dia. Daqui a pouco chega o carro do lixo e com ele a remoção dos sobejos da vida que se viveu.