25.10.11

A teoria do cano roto

Digam-me que não somos um mundo de loucos à solta? Permitimos o fabrico, a publicidade, o comércio de automóveis que na quase totalidade atingem mais de duzentos quilómetros horas. O que não é permitido em circunstância alguma. Depois para controlar os excessos de velocidade mobilizamos recursos humanos [polícias, magistrados, funcionários], técnicos [placas de sinalização, radares], legais, e tudo isso custa uma fortuna aos contribuintes.
Não seria mais fácil e mais barato pura e simplesmente proibir tais carros, metendo na cadeia quem os fabricasse ou adaptasse para tais velocidades, e apreendendo-lhes o brinquedo?
Há quem pense que seria uma violência. Assim como está é que está bem! Entre mortos e feridos por excesso de velocidade, cujas vítimas os tribunais indemnizam ao desbarato, combustível desperdiçado, o Estado lucra com impostos e perde-o na despesa. É a teoria do cano roto!

23.10.11

A faísca e o incêndio

Primeiro, foi a mão de obra clandestina que importámos para as grandes obras do cavaquismo e que tinham de estar prontas a tempo dos calendários políticos de inauguração e digo Cavaco sim, porque parece que este que está em Belém não se lembra que é o mesmo que esteve em São Bento. Milhares de homens, desenraizados, sem família, negros, eslavos, não importa de onde, tudo gente para o trabalho braçal, a viverem sem mulher, sem o aconchego de um lar, em trabalhos duríssimos, habitando na degradação da periferia. Gente que acumulou ressentimentos, que construíram o luxo para os outros vivendo na miséria própria, que criou o seu "ghetto", pelos bairros que são hoje barris de pólvora.
Depois, foi o coração generoso de António Guterres a criar o rendimento mínimo garantido, e a viverem dele, e a continuarem a viver dele, além dos que realmente precisam - e tantos milhares são de uma, pobreza afrontosa - , uma camarilha de exploradores, muitos marginais mesmo, a compensarem aquele vencimento certo com uns "biscates" de quando em vez e umas malfeitoriais sempre que podiam. Gente que se habituou a não trabalhar, a poder ficar manhãs até tarde na cama, a gozar de noitadas. E que agora,ao saberem pelas notícias que o que era doce acabou-se vai entrar no bom e no bonito da ressaca e com ela na violência, porque os hábitos de trabalho foram-se com o regabofe que a permissividade do Estado Social foi consentindo. A que se juntaram os que usaram e abusaram do subsídio de desemprego porque nunca encontravam emprego por não quererem encontrar emprego.
Enfim as mulas de carga do sistema, que alombaram com o trabalho de que saiu o que o País produziu, a sacrificarem-se para além das horas em empregos insuportáveis, a saírem estafados de um turno para entrarem noutro para que houvesse em casa mais pão, a aceitarem trocas para receberem mais algum, os que ainda tinham um "extra" ao sábado e ao domingo, gente que cozia roupa para as grandes superfícies, que fazia limpezas fora do horário nos empregos e noitada em segurança, os que davam explicações depois das aulas, os que se agarravam doze e catorze horas a um táxi. Gente que mesmo assim se endividou, gente que vai agora para o olho da rua por causa da gestão danosa de quem esteve no poder, gente que vive no terror de não poder pagar a casa, gente que já não paga a escola dos filhos, gente que, mesmo no come-em-pé se fica por uma sopa.
Não sei onde, não sei quando, bastará uma faísca para que um incêndio consuma o País no Inverno.
Leio na impressa que o coronel Vasco Lourenço pede aos militares se coloquem ao lado do povo no caso de uma alteração da ordem pública. Dir-se-à que é um sinal, ou uma sugestão, ou um aproveitamento.
Não sei que militares temos ainda num País que terá mais oficiais do que soldados. E se os militares não foram entretanto capados pelos civis e hoje não são apenas o Exército da indiferença, travando a batalha de naval nas repartições ociosas.
Sei sim o povo que temos. E sinto que a revolta está na ordem do dia. Não a das manifestações de rua da greve geral que o aparelho da CGTP e os apparatchicks do PCP conseguem ainda enquadrar, a bem da ordem pública e do sistema, mas a revolta sem partido nem ideologia, a revolta que é a mais que a de extremismos políticos, a revolta sem política e contra tudo, a explosão pura do já não aguentar mais.
O melhor sinal, o mais audível, veio da Igreja. Tem-lhe cabido apontar o Mundo como sacrifício e o Céu como promessa e oferecer rezas e novenas como método, cuidando, através das Misericórdias, dos mais urgentemente necessitados. Ora são da Igreja as vozes de onde surge o alerta. Quando o Patriarcado já não acredita em milagres, talvez não haja Virgem de Fátima que nos valha.
Não sei em que dia nem como nem porquê. Mas ou o Governo pára e pensa que está a ir para além do que lhe é permitido ao carregar nos que mais precisam e ao apoucar-nos continuando a abrir excepções em favor dos mesmos de sempre ou isto acaba mal. Muito mal mesmo.

22.10.11

Alemanha: entre o ressentimento e a dependência

Mas as pessoas esquecem, ao avaliar hoje a psicologia do povo alemão, as imposições a que sujeitaram os alemães, em 1919, com o Tratado de Versalhes, nomeadamente o pagamento aos países vencedores, principalmente à França e à Inglaterra, uma indemnização pelos prejuízos causados durante a guerra, no valor de 269 bilhões de marcos? Se esquecem, é só lerem aqui e aqui.
As pessoas esquecem em que medida esse opróbio gerou um sentimento de revolta que é uma das géneses do nazismo?
As pessoas esquecem que foi o dinheiro americano do Plano Marshall [1,448 milhões de dólares, entre 1948 e 1951, valor à época] que permitiu a reconstrução alemã e da Europa em geral?
Mas as pessoas são amnésicas ou incultas?
Entre o ressentimento face aos outros europeus e a dependência face aos americanos, eis a Alemanha, esse animal encurralado em busca do seu espaço vital, maior em ambição e capacidade do que o espaço territorial onde nasceu.

20.10.11

A trapeira do Job

Isto que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente. 
Mas houve um tempo em que as pessoas se lembravam ainda da época da infância, da primeira caneta de tinta permanente, da primeira bicicleta, da idade adulta, das vezes em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do primeiro televisor, do primeiro rádio e de quando tinham ido ao estrangeiro.
Houve um tempo em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o sobejante da refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe restante, se fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o colarinho e os punhos do avesso, assim como os casacos e se tingia a roupa usada, tempos em que se punham meias solas com protectores. Tempos em que, ao mudar-se de sala, se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho de ver a Deus e à sua Joana".
E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na Inglaterra dos Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945 passava-se fome na Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a selvajaria humana pode arrasar.
Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.
Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital. Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no condomínio fechado e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status como a língua nos cães para a sua raça. 
Foram anos em que o campo se tornou num imenso ressort de turismo de habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave. Houve quem pensasse até que um dia os serviços seriam o único emprego futuro ou com futuro.
O País que produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade, vindos dos fins de semana com a mala do carro atulhada do que não lhes custara a cavar e, às vezes, nem obrigado. 
O País que produzia o que se podia transaccionar esse ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios e que os víamos chegar, mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou negócio.
Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente.
Os intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da maquinaria industrial pelos megabytes de RAM da computação universal. Um dia os computadores tudo fariam, o ser humano tornava-se um acidente no barro de um oleiro velho e tresloucado, que caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho ungénito e mais uma trinitária pomba.
Às tantas os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a servir à mesa porque estávamos a importar brasileiros, não havia portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos.
A chegada das lojas dos trezentos já era alarme de que se estava a viver de pexibeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a medir.
Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista, trocado pelo novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais claro, e sempre pela reforma agrária e vai um uísque de malte, sempre ao lado do povo e já leu o New Yorker?
A agiotagem financeira essa ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a conta-ordenado, veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum banco quer que lhe devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital rende. 
Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois, que somos nós todos, os bancos instigavam à compra, ao leasing, ao renting ao seja como for desde que tenha e já, ao cartão, ao descoberto autorizado.
Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele balcão bancário buscar dinheiro, vender-mo-nos ao dinheiro, enforcar-mo-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra.
Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o mando, querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda governamental, e nos intervalos, imbelicidades e telefofocadas que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula. E contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem, pensando por nós.
Estamos nisto.
Este fim de semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.
Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura em Bizâncio discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós.

15.10.11

Bon chic, bon genre

Confesso que o homem me irrita. E confesso que ainda mais me irrita a corte de quantos o deificam, nele vêem o Catão das virtudes, o Moralista por excelência, o Polícia dos costumes. E acreditam que o dizer mal de tudo decorre de uma pureza de alma e de uma coerência de carácter.
Não é só ele. Há pelo País uma pleiade façanhuda de gente mal disposta e mal encarada que, por um lado, têm sempre opinião sobre todas as coisas e, segundo, se julgam o relicário das virtudes. E com lugar cativo na imprensa, doutorais e papais.
Um dia passo-me e conto a história pregressa do Vasco Pulido Valente Correia Guedes. Do que fez para chegar a assistente de Económicas. E do mais e quanto tudo isso foi de vergonhoso e como foi a história de uma ambição feita método.
Dir-se-à que isso que eu contar foram estouvadices do seu passado juvenil, como o deveria mencionar a testemunha abonatória que então indicou à PIDE/DGS, nos autos ali abertos, a seu pedido, e chamados de revisão, o Dr. António Martinha, dos Serviços de Censura, colega na mesma do pide António Barbieri Cardoso.
Não! É que houve quem, nesses anos de chumbo, comeu o pão que o Diabo amassou e foi expulsa da Universidade e corrida de empregos públicos e até na privada se lhe fecharam as portas. 
Gente que aguentou firme, não delatou, não jurou fidelidade à Constituição de 1933, não traiu. Gente da classe média que ele hoje despreza, com a sua arrogância patrícia de bon chic bon genre, como se lê na sua crónica de hoje no jornal Público.
A farsa do diletantismo é o circo das democracias caducas. Nela há duas regras de vida: o epicurismo burguês e o desprezo pela criadagem. Que eles, os snobs malcriados, acham somos todos nós.
Detesto falar de pessoas. No caso falo de uma encenação.

O Estado e a Revolução

Encostada à parede, a classe média é o terreno fértil onde pode florescer a semente do revanchismo autoritário. Foi assim que surgiu nos anos vinte o totalitarismo ateu alemão, o fascismo concordatário italiano e a rural ditadura católica salazarista.
Há nela, a pequena burguesia, o desprezo pela plutocracia argentária e o arrogância face ao operariado bolchevista.
Não é de excluir que a revolta surja daí, partindo-se o País pelo seu elo mais fraco. 
Além disso, obediente à troika o Governo eximiu-se de carregar no capital, por pensar que a crise financeira se resolve com a acumulação do capital. Por muito que tenha errado, o marxismo já tinha demonstrado que era o inverso. Ontem o primeiro-ministro mostrou quem vai ser sangrado para que esse capital se encontre.
Ademais Portugal é uma Nação governada por funcionários endividados e administrada por políticos que são funcionários dos credores.
Tudo junto, basta uma faísca não importa em que Grécia, ou uma primeira rixa de rua, a revolta torna-se em insurreição.