11.12.11

Outra vez, amigo?

Esta história é uma das mil histórias com a qual nos cruzamos todos os dias. Estava caído junto ao muro do jardim da Gulbenkian. Meio dormente, tremia, mal conseguia articular palavra. Álcool, frio, escassa alimentação, encovado, o olhar ausente, a barba desgrenhada, sujo. Tinha trabalhado no Jardim Zoológico, foi o que consegui saber. Tratava então dos animais. Hoje estava reduzido a ser um deles, partilhando com eles e a rua e os caixotes. 
Chamei o 112. «Outra vez, amigo?», perguntaram, amáveis, quando chegaram e deram com ele. Outra vez, para ambos, os resíduos da sociedade, como o lixo do nosso consumismo que pela noite é removido pela Câmara Municipal. Neste caso era um dos corpos que consumimos, seres humanos que são aquilo de que nos servimos até já não servirem.
Momentos antes, um pai e seus dois filhos tinham-se cruzado com a situação. Protegendo as crias, o progenitor puxou-as para que, afastando-as do passeio, seguissem pela rua, fora do contágio que pela vista se consumaria. 
«O que é aquilo?», perguntou um dos meninos. «Nada!», respondeu o papá. 
Tudo afinal do mais verdadeiro na nomenclatura do mundo em que vivemos: «aquilo» e «nada». A linguagem a trair os sentimentos, estes calcados pelas ideias, as interesseiras desinteressadas.

P. S. [a foto, evidentemente, não é a do que vi, mas afinal do que poderia ter visto. A banalidade da miséria torna-se a nossa má consciência numa consciência má, pela indiferença].