Uma das coisas mais notáveis no mundo mediático é a capacidade que ele tem de gerar factos que dão origem a opiniões, que suscitam debates sobre coisas que, vamos a ver depois, afinal, nem sequer eram assim.
Lembro-me de quando fui secretário do Conselho de Ministros do VI Governo Provisório, o governado pelo Almirante Pinheiro de Azevedo.
Entre as muitas histórias que tenho para contar um dia, vem agora a propósito esta, pois mostra do que falo.
Foi durante um dramático Conselho de Ministros em que se aprovou a Lei da Reforma Agrária, a que tomava o rio Tejo como fronteira e definia que a sul continuava a política de expropriações, embora mais moderada do que até então, e a norte do país tudo se desenvolveria através de uma lógica de arrendamento rural, como forma de garantir, indirectamente, a terra a quem a trabalhasse.
Dado o nervosismo público que reinava em torno da questão e a tensão política que aumentava como uma espiral de um ciclone, entendeu-se que se faria uma fuga controlada de informação para o jornal «Expresso», de modo a que se lançasse logo as sementes do conhecimento do novo regime agrário e se alcançasse alguma paz social, num universo cada vez mais insurreicional.
Coube-me tratar do assunto e eis-me, quase embuçado, nos corredores do Flórida, ao Marquês de Pombal, num encontro clandestino com o meu contacto no jornal, para lhe passar, subrepticiamente as fotocópias do decreto ainda fresco, aprovado pela hora do jantar, cópias que, por uma questão de segurança, eu mesmo tirara.
No dia seguinte ao ler o jornal fiquei espantado, pois o semanário da Rua Duque de Palmela, noticiando na primeira página a questão da Lei da Reforma Agrária, dava conta que à hora do fecho da edição «ainda estavam por aprovar os artigos» tais e tais.
Atónito telefonei ao meu amigo jornalista, afinal para me espantar ainda mais.
Ante o meu «mas que raio de ideia foi essa dos artigos por aprovar», respondeu-me, com a maior calma do mundo: «é pá, fogo, tu com a pressa tinhas-te esquecido de fotocopiar uma página do meio do decreto e a malta, tás a vêr, desenrascou a coisa assim!».
Ora aí está! Hoje e sempre, há certa malta nos jornais que desenrasaca a coisa assim. Outros, mesmo sem ler, opinam, outros, ledores, empinam. No dia seguinte, esquecido o escândalo, passa-se para o tema seguinte, que isto há que ir desenrascando umas notícias com as fotocópias que temos.