Há mais de quarenta anos acordei uma manhã às manchas. Manchas generalizadas, estranhas, a disseminar um aspecto equívoco, contagioso, pestífero. Minado moralmente, quase incapaz de me mostrar à comunidade dos humanos, como se lazarento fora, encurralado na gafaria dos meus pavores, acabei por procurar, sob o crepúsculo protector do entardecer e embuçado com o possível, um médico que me desse a extrema-unção clínica daquele meu estado a meus olhos pré-putrefacto.
Sujeito bonacheirão, careca luzidia, mãos sapudas que esfregava, voluntarioso, uma na outra, como se em eterno contentamento consigo, ei-lo o dermatologista procurado, ali para a Cova da Moura, comigo na sua frente, ele de olho clínico, eu em pilau, a totalidade da minha erupção cutânea ali exposta ante a luz crua do consultório, apto à anamnese, ansioso pelo diagnóstico
Foi então que se deu o inesperado. Como se num grito de guerra de estranha língua, lançou para todos os gabinetes daquela populosa policlínica, um «pitiríase rósea de Gibert!», a cujo brado acorreram, como se das crateras de Hipócrates viessem, colegas eles e elas também, todos num súbita roda prescrutadora, em torno da minha envergonhada nudez.
Foi, naquela comunidade científica um delírio de aprendizado. «Colegas», proclamava o meu doutor, ante o círculo de todos os outros, batas brancas a ladearem-me como um cerco índio ao carro coberto, «Colegas! Tal como vem nos manuais! Cor-de-rosa triste!».
Sim, era essa a cor, a minha desgraçada côr.
Lembrei-me disto ao ver esta noite, por um momento em televisão alheia, o general Ramalho Eanes falar do estado de depressão que grassa no país e eu a lembrar-me do animado Governo que temos e que se diz socialista: cor-de-rosa triste, poderia ele ter dito do que por anda!
Com uma diferença! A pitiríase rósea de Gibert, cura-se por si, o Governo, esse, só com eleições.