21.4.11

O gesto estranho

Estendeu-me a mão decidida mas com um olhar indiferente, como se ainda prosseguisse, arrastando-a, a conversa com o que me antecedia. À pergunta sobre se poderia entrar com aquele saco, nem resposta deu, alçando-mo, mecânica, da mão, para colocá-lo, preste, num cacifo, entregando-me, em troca, uma ficha de depósito.
Havia, porém, algo de incerto no seu modo de agir, como se uma timidez ocultasse aquele rápido desembaraço. Era a seu modo eficiente, ainda que pouco comunicativa. Mas estranha.
A verdade surgiu com a crueldade da conclusão no mesmo instante. Hoje, tarde de chuvisco e de tolerância de ponto, tarde de compras naquele supermercado, ela era peça anónima do serviço de recepção. A sua tarefa tinha a importância de tentar defender a honra dos honestos face a equívocos e evitar que os desonestos se pudessem aproveitar da confusão. Além disso era aquele o seu ganha-pão, do qual sairia, Deus sabe, que sustento para nem se imagina o quê.
Havia em tudo isso uma única particularidade que tudo explicava incluindo a estranheza dos gestos: era cega.
Depois de mim, os seus olhos inseguros e mortos varriam o horizonte próximo buscando quem quer que viesse a seguir a nós. Pressentia, como num arrepio, a presença do outro, a sombra humana, o passo seguinte da sua repetitiva função. Tantas horas assim durante cada dia, todos os dias.
São estes os pequenos heróis quotidianos, os que envergonham as nossas menoridades de alma com a sua força moral, a capacidade de resistirem silenciosamente à adversidade, o tornarem passinho miúdo da rotina os passos de gigante da sua coragem.