7.8.07

No comboio descedente

Há quem ouça «No comboio descendente vinha tudo à gargalhada, uns por verem rir os outros e os outros sem ser por nada» e pense que se trata de um poema do José Afonso. Não é. Foi o Fernando Pessoa quem o escreveu. Termina assim: «No comboio descendente mas que grande reinação! Uns dormindo, outros com sono, e os outros nem sim nem não – no comboio descendente de Palmela a Portimão».
Lembrei-me disto, no comboio descendente, de Entrecampos a Loulé. Lá dentro, escoltada entre mamã e avózinha uma insuportável criancinha, perfeito endemoninhado luciferino, que gritou, choramingou, pontapeou, mordeu, jogou-se ao chão, ante uma carruagem inteira capaz de se virar ao nângero à chapada mas a conter-se. Num momento único em que um sabujo passageiro foi, solícito e cortês, buscar entre os assentos um brinquedinho com que a vóvó tentava acalmar a besta fera ouviu-se, da boca da respeitável e complacente anciã, um murmúrio, como se lhe devessemos todos desculpas por irmos ali a gramar aquele infante delinquente: «são crianças, não é?». É, pensei eu, no comboio descendente, entre a grande reinação.