«O que queres que eu te ofereça, tu que nunca queres nada?», perguntou-me ela, desejosa de se livrar do acto de dar. Nenhum outro como quem é nosso para não saber o que queremos, como se julgasse termos já tudo. «Dá-me o Lobo Antunes», respondi-lhe, depois de remoer, como se me faltasse tanta coisa, na imensidão de ter tão pouco. «Qual deles?», inquirou ela, na sua juventude cultivada, querendo falar dos muitos livros do António, nem se lembrando que existe, pelo menos, o João, também médico, também escritor. «Qualquer um, tanto faz!», respondi-lhe, talvez por ser Natal e eu querer, enfim, reconciliar-me com uma escrita que, sem saber porquê, tenho desprezado, por não gostar, quase sem o conhecer, da pessoa do seu escritor.
A noite passada comecei a ler, amigável, mas desconfiado. Teimei em seguir no pequeno livro, todas as linhas, quase soletrando cada uma das suas muitas palavras, rendendo-me, reconheço, ao modo tumultuoso de fazer sentir, admirando, é verdade, aquele torrencial desfilar de frases aladas , vibrando, enfim, com o estilo, mesmo quando errático, perdoando-me pelo mal que pensei e absolvendo-me do que venha a pensar.
Foi então que, depois de lidos chorrilhos infindos de palavrões, surgiu o «quando é que eu me fodi?, perguntou-se o psiquiatra». Parei aí, lembrando-me do pobre do Vergílio Ferreira, que deixou no seu diário que aquilo era uma escrita de «caralhices» de um homem «com entradas de Lobo e saídas de Antunes», e eu ainda na fase lupina dessa prosa hoje aureolada.
Ia na página 26 da edição da «Memória de Elefante», texto que uma «comissão» consagrou como sendo a «ne varietur», imortalizando a obra na sua fixidez tipográfica, fora ela o mausoléu de si própria, enfim morta!
Mas não desisto e hei-de lê-lo todo! Hoje não, porque é Natal e o Menino Jesus, coitadinho, é inocente e tem a vida toda para aprender com os romanos impropérios e com os filisteus outras obscenidades. Terminará na cruz, sem se perguntar como se perguntou o psiquiatra. Mas hoje, ele é pequenino e dorme aqui a meu lado, desde a minha infância, entre palhinhas, a vaca, o burro e uns pais que foram-no, afinal, sem o terem sido sequer, tão misteriosamente quanto a pomba, que seria ele não o sendo, todos o mesmo, todos divinos, um deles humano.