2.2.08

Godos e romanos

Manuel Buiça, que era de Vinhais, disparou sobre o Rei D. Carlos. Alberto Martins, deputado, que também é de Vinhais, disparou sobre a aprovação parlamentar de uma homenagem ao rei morto, que alguns desejavam ver decretada no mesmo hemiciclo onde já foram as Cortes.
O Parlamento republicano não quis que uma homenagem ao rei fosse uma homenagem contra a República, já que corria o risco de, antecipando 1910 a 1908, entroncar, no subconsciente da nação, a sua legitimidade política, não numa proclamação feita das varandas do Município, mas sim num homicídio régio no quarteirão ao lado, tudo nesta pequena Lisboa.
Esta manhã lembrei-me da coincidência transmontana de Vinhais.
Escrevendo para a Seara Nova, em 1922, Aquilino Ribeiro, a quem não é indiferente na sua escrita telúrica, a origem das espécies que por ela desfilam, descreve o regicida como «este tipo de português, vindo do Norte, da parte mais persistentemente nacional, godo que aflorasse na linha longa de gerações, genuíno, inquieto e batalhadora como a flor estremece da raça».
Li isto e, por falar em godos, lembrei-me do Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano, quando ele descreve o momento em que os romanos derrotados conseguiram absorver esses rudes homens godos de «afectos ardentes e profundos» numa só nação com os decadentes césares do meio-dia.
Fui buscá-lo à estante e lá estava o momento que se me vincou no espírito, uma vez mais: «a civilização, porém, que suavizou a rudeza dos bárbaros era uma civilização velha e corrupta. Por alguns bens que produziu para aqueles homens primitivos, trouxe-lhes o pior dos males, a perversão moral».
Eis a miscigenação que torna a questão do regime indiferente, a diferença entre os governos nula, os Buiças deste mundo - de novo Aquilino - «argamassado, a um grau extremo, das virtudes e falhas da raça».