20.5.12

Um dia mau em Rio Mau

Sabia que era perto de Vila do Conde. Há um local com o mesmo nome em Penafiel. Viajámos até lá. O propósito era encontrar a igreja, românica, fotografar-lhe as representações, de uma insólita icononografia sagrada, de que falarei em outro lugar. Em São Cristóvão de Rio Mau.
Estava, porém, fechada. Chovia mansamente. Mesmo assim, segurando um no guarda-chuva, fotografou-se, uma a uma o que eram no exterior, incluindo o tímpano, as imagens talhadas na pedra.
Já em cabisbaixa retirada, por nos estar vedado o interior, cruzá-mo-nos, elas a sair do cemitério em frente, com duas paroquianas idosas, semblante amável. «Está fechada a Igreja...», arrisquei dirigindo-me a uma delas, na esperança de um informação. Sim estava, mas fosse à casa ao lado, a do padre, batesse à porta que «a criada» tinha a chave e viria abrir.
Assim fomos. Educadamente, polidamente, humildemente, um toque de campainha.
Surgiu a dita à janela, moçoila, cabeça atirada para fora em gesto de rompante, como se fossemos intrusos, logo vociferante porque era meio-dia, e que se isto eram horas, e que estava a fazer o almoço e num sei quê mais de imprecações.
Entre desculpas encolhidas minhas, lá veio, entretanto, abrir, sempre com o arrazoado censuratório quanto à inconveniência da hora, que a igreja é visitada por milhares «de estrangeiros» mas que eles não batem àquela hora «que nisso são são mais organizados». 
Tornei a pedir desculpa, desta vez já nem sei se desculpa por não ser estrangeiro. Debalde, porém, porque a arenga continuava, que «estava a fazer o almoço para pessoas de noventa anos e se isto são horas...»
«Mas podiam pôr um letreiro com o horário...», ainda arrisquei, timorato, receando a resposta que não tardou. «Não é preciso letreiro nenhum! Isto são coisas que se aprendem de pequenino! Não se bate à porta da casa das pessoas ao meio-dia». 
E que bem nos tinha visto meia-hora antes a chegar, atravessou, mentindo agora, sempre no mesmo tom de toque a rebate, como se não tivesse bastado ter-nos dito que agora não podia e que voltássemos mais tarde.
Fotografámos apressados, quais ladrões furtivos. 
Agradeci muito, renovei desculpas. 
Faltava o final do responso: que nós não valorizamos o que temos, mas os estrangeiros «esses sim dão valor.». E eu português, afinal, um mísero português...
Regressámos aturdidos, ofendidos, humilhados.
Da casa do vigário de Cristo na Terra, aliás uma bela casa de quinta, de automóvel à porta, tinha vindo aquela emissária, a receber com aquele modo desabrido quem vinha procurando a simbologia da divindade com nove séculos de vida. 
Nem me atrevi a dizer porque estava ali. Mais do que inútil, era sujeitar-me a invocar a decência espiritual do argumento a quem me tratava como se eu fosse uma besta ímpia e sem modos.
Fosse o próprio Jesus Cristo seria recebido do mesmo modo, com duas pedras na mão. Uma vergonha. Vim dizê-lo aqui pelo respeito que me merece o que é sagrado. Diz a lenda que o lugar chama-se Rio Mau por haver ali túneis guardados por dragões e serpentes.